Oratório São José

Prática da Quaresma

Ano Litúrgico - Dom Próspero Gueranger

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PRÁTICA DA QUARESMA

Ano Litúrgico – Dom Próspero Gueranger

O TEMOR SALUTAR – Depois de ter passado as três semanas da Septuagésima meditando sobre nossas enfermidades espirituais e sobre as feridas causadas em nós pelo pecado, devemos estar prontos para entrar na estação penitencial, que a Igreja já começou. Temos agora um conhecimento mais claro da justiça e santidade de Deus e dos perigos que aguardam uma alma impenitente; e, para que nosso arrependimento seja sincero e duradouro, nos despedimos das alegrias e alegrias do mundo. Nosso orgulho foi humilhado pela profecia, que esses corpos logo seriam como as cinzas que escreveram a lembrança da morte em nossas testas.

Durante estes Quarenta Dias de penitência, que parecem tão longos para nossa pobre natureza, não seremos privados da companhia de nosso Jesus. Ele parecia ter se retirado de nós durante aquelas semanas da Septuagésima, quando tudo nos falou de suas maldições sobre o homem pecador – mas essa ausência nos fez bem. Ensinou-nos a tremer com a voz da ira de Deus. O temor do Senhor é o começo da Sabedoria. Descobrimos que é assim: o espírito da penitência está agora ativo dentro de nós, porque tememos.

O EXEMPLO SEDUTOR DE CRISTO – E agora, vamos olhar para o objeto divino que está diante de nós. É o nosso Emmanuel; o mesmo Jesus, mas não sob a forma do doce Menino que adoramos em seu Presépio. Ele cresceu até a plenitude da idade do homem, e usa a aparência de um pecador, tremendo e se humilhando perante a soberana majestade de seu pai, a quem nós temos ofendido, e a quem ele agora se oferece como a vítima da propiciação. Ele nos ama com o amor de um irmão; e vendo que a estação para nossa penitência começou, ele vem nos animar com sua presença e seu próprio exemplo. Vamos passar quarenta dias em jejum e abstinência: Jesus, que é a própria inocência, passa pela mesma penitência. Nós nos separamos, por algum tempo, dos prazeres e vaidades do mundo: Jesus se retira da companhia e da visão dos homens. Pretendemos assistir os Serviços Divinos mais assiduamente e rezar mais fervorosamente do que em outras ocasiões: Jesus passa quarenta dias e quarenta noites orando, como o mais humilde suplicante; e tudo isso por nós. Vamos pensar sobre nossos pecados passados ​​e lamentá-los em pesar amargo.

Tão logo ele recebeu o batismo das mãos de São João, o Espírito Santo o levou ao deserto. Chegara a hora de ele se mostrar ao mundo; Ele começaria nos ensinando uma lição de imensa importância. Deixa o Santo Precursor e a admirável multidão que viu o divino Espírito descer sobre ele e ouviu a voz do Pai, proclamando-o como seu Filho Amado; Ele os deixa e vai para o deserto. Não muito longe do Jordão, ergue-se uma montanha acidentada, que recebeu, em épocas posteriores, o nome de Quarantana. De lá se tem uma visão da planície fértil de Jericó, do Jordão e do Mar Morto. É dentro de uma caverna desta rocha selvagem que o Filho de Deus entra agora, seus únicos companheiros eram os animais mudos que escolheram este lugar para seu próprio abrigo. Ele não tem comida para satisfazer as dores da fome; a rocha estéril não pode dar-lhe bebida; sua única cama deve ser de pedra. Aqui está ele para passar quarenta dias; depois disso, ele permitirá que os Anjos o visitem e tragam comida para ele.

Assim nosso Salvador vai diante de nós no caminho sagrado da Quaresma. Ele carregou todas as suas fadigas e dificuldades, para que nós, quando chamados a trilhar o caminho estreito de nossa Quaresma Penitêncial, podessemos ter o Seu exemplo com o qual silenciar as desculpas, sofismas e repugnâncias, do amor próprio e do orgulho. A lição é aqui dada é muito clara para não ser entendida; a lei de fazer penitência pelo pecado é aqui mostrada com muita clareza, e não podemos alegar ignorância, aceitemos honestamente o ensinamento e o pratiquemos. Jesus deixa o deserto, onde passou os Quarenta Dias, e começa sua pregação com estas palavras, que ele dirige a todos os homens: faça penitência, pois o reino dos céus está próximo. Não vamos endurecer nossos corações a este convite, para que não se cumpra em nós a terrível ameaça contida naquelas outras palavras de nosso Redentor: Se não fizerdes penitência, perecereis (Lc 13,3).

A VERDADEIRA PENITÊNCIA – Agora, a penitência consiste na contrição da alma e na mortificação do corpo; estas duas partes são essenciais para isso. A alma quis o pecado; o corpo frequentemente cooperou em sua comissão. Além disso, o homem é composto de alma e corpo; ambos, então, devem prestar homenagem ao seu Criador. O Corpo deve compartilhar com a alma, ou as delícias do céu, ou os tormentos do inferno; não pode, portanto, haver qualquer vida cristã completa, ou qualquer penitência séria quando ambos, corpo e alma, não participam.

CONVERSÃO DO CORAÇÃO – Entretanto, é a Alma que dá realidade à Penitência. O Evangelho ensina isso pelos exemplos que nos apresenta do Filho Pródigo, de Madalena, de Zaqueu e de São Pedro. A alma, então, deve estar resolvida a desistir de todo pecado; ela deve sofrer de todo coração daqueles que ela cometeu; ela deve odiar o pecado; ela deve evitar as ocasiões do pecado. As Sagradas Escrituras têm uma palavra para essa disposição interior, que foi adotada pelo mundo cristão e expressa admiravelmente o estado da alma que se afastou de seus pecados: esta palavra é, conversão. O cristão deve, portanto, durante a Quaresma, estudar para se excitar a esse arrependimento de coração, e considerá-lo como o fundamento essencial de todos os seus exercícios Quaresmais. No entanto, ele deve lembrar que esta penitência de espírito seria uma mera ilusão, se ele não praticasse a mortificação do corpo. Deixe-o estudar o exemplo dado a ele por seu Salvador, que de fato sofre e chora por nossos pecados; mas ele também os expia por seus sofrimentos corporais. Por isso, é que a Igreja, intérprete infalível da vontade do seu Divino Mestre, nos diz que o arrependimento do nosso coração não será aceito por Deus, a menos que seja acompanhado de jejum e abstinência.

NECESSIDADE DA EXPIAÇÃO – Quão grande, então, é a ilusão daqueles cristãos, que esquecem seus pecados passados, ou se comparam a outros cujas vidas consideram ter sido piores que as deles; e assim, satisfeitos consigo mesmos, não podem ver o mal ou perigo na vida fácil que pretendem passar pelo resto de seus dias! Eles lhe dirão que não pode haver necessidade de pensar em seus pecados passados, pois eles fizeram uma boa Confissão! Não é a vida que eles levaram desde então uma prova suficiente de sua sólida piedade? E por que alguém deveria falar com eles sobre a justiça e mortificação de Deus? Assim, assim que a Quaresma se aproxima, eles devem receber todos os tipos de dispensas. A abstinência é um inconveniente: o jejum afeta sua saúde, interfere em suas ocupações, é uma mudança do modo de vida comum.

A Igreja vê essa terrível decadência de energia sobrenatural, mas ela aprecia o que ainda resta, tornando suas observâncias da Quaresma mais fáceis, ano após ano. Com a esperança de manter esse pouco, e de vê-lo fortalecer para um futuro melhor, ela deixa à Justiça de Deus seus filhos que não lhe escutam, quando ela lhes ensina como eles podem, mesmo agora, propiciar sua ira. Ai! esses seus filhos, de quem estamos falando, estão bastante satisfeitos de que as coisas deveriam ser como são, e nunca pensam em julgar sua própria conduta pelos exemplos de Jesus e seus santos, ou pelas regras inesgotáveis ​​da penitência cristã.

DISPENSAS – É verdade, existem exceções, mas quão raras elas são, especialmente em nossas grandes cidades! Preconceitos infundados, desculpas ociosas, mau exemplo, todos tendem a levar os homens à observância da Quaresma. Não é triste ouvir pessoas dando uma razão como esta por não jejuarem ou se absterem, porque lhes é um incomodo? Certamente, eles esquecem que o objetivo do jejum e da abstinência é fazer esses corpos pecaminosos (Rm 6,6) sofrer e sentir. E o que eles responderão no Dia do Juízo, quando nosso Salvador lhes mostrará como os próprios turcos, que eram os discípulos de uma religião grosseira e sensual, tiveram a coragem de praticar, todos os anos, os 40 dias de austeridade de seu Ramadã?

Mas a sua própria conduta será o mais alto acusador. Essas mesmas pessoas, que se convencem de que não têm força suficiente para suportar a abstinência e o jejum da Quaresma, mesmo em sua presente forma atenuada, não pensam em passar por fadigas incomparavelmente maiores em prol de ganhos temporais ou prazeres mundanos. As Constituições, que sucumbiram na busca de prazeres, que, para dizer o mínimo, são frívolas e sempre perigosas, teriam mantido todo o seu vigor, tinham as leis de Deus e de sua Igreja, e não o desejo de por favor ao mundo, foi o guia de sua conduta. Mas tal é a indiferença, com a qual essa não-observância da Quaresma é tratada, que nunca excita o menor problema ou remorso de consciência; e aqueles que são culpados disso discutirão com você que as pessoas que viveram na Idade Média talvez pudessem manter a Quaresma, mas que hoje em dia está fora de questão: e podem dizer isso friamente diante de tudo o que a Igreja fez para adaptá-la. Quaresma disciplina para a fraqueza física e moral da geração presente! Como é que, enquanto esses homens foram treinados ou convertidos à Fé de seus Pais, eles podem esquecer que a observância da Quaresma é uma marca essencial da catolicidade; é por isso que quando os protestantes se comprometeram à fé de seus pais puderam esquecer a observância quaresmal; e, no século XVI, uma de suas principais queixas dos protestantes era que a Igreja insistia em seus filhos se humilharem com o jejum e a abstinência!

LEGÍTIMA DISPENSA E NECESSIDADE DE ARREPENDIMENTO – Mas – será perguntado – não há, então, dispensas legais? Nós respondemos que existem; e que elas são mais necessárias agora do que nas eras anteriores, devido à fraqueza geral de nossas constituições. Ainda assim, existe um grande perigo de nos enganarmos. Se temos força para passar por grandes fadigas, quando o nosso amor próprio é gratificado por eles, como é que estamos muito fracos para observar a abstinência? Se um ligeiro inconveniente nos impedir de fazer essa penitência, como faremos expiação pelos nossos pecados, pois a expiação é essencialmente dolorosa para a natureza? A opinião de nosso médico de que o jejum nos enfraquecerá pode ser falsa ou correta; – mas essa mortificação da carne não é o objetivo que a Igreja almeja, sabendo que a nossa alma vai lucrar com o corpo sendo trazido em sujeição? Mas suponhamos que a dispensa seja necessária: que nossa saúde seja prejudicada, e que os deveres de nosso estado de vida sejam negligenciados, se fôssemos observar a lei da Quaresma ao pé da letra: nós, nesse caso, nos esforçamos, por outras obras de penitência, para suprir aquelas que nossa saúde não nos permite observar. Estamos aflitos e humilhados por nos acharmos, assim, incapazes de nos unirmos aos demais fiéis filhos da Igreja, suportando o jugo da disciplina quaresmal? Pedimos a nosso Senhor que nos conceda a graça, no próximo ano, de compartilhar os méritos de nossos irmãos cristãos e de observar as práticas santas que dão à alma uma certeza de misericórdia e perdão? Se o fizermos, a dispensa não será prejudicial para os nossos interesses espirituais; e quando a Festa da Páscoa chegar, convidando os fiéis a participar de suas grandiosas alegrias, podemos confiantemente tomar nosso lugar lado a lado com aqueles que jejuaram; pois, embora nossa fraqueza corporal não nos tenha permitido manter o ritmo exteriormente, nosso coração tem sido fiel ao espírito da Quaresma.

PROVEITOSA INSTITUIÇÃO DO ANO – Por quanto tempo ainda podemos dar uma lista de provas da negligência, na qual o espírito moderno de autoindulgência leva tantos entre nós, em relação ao Jejum e à Abstinência! Assim, há católicos a serem encontrados em todas as partes do mundo que fazem a comunhão da Páscoa, e professam ser filhos da Igreja Católica, que ainda não têm idéia das obrigações da Quaresma. Sua própria noção de jejum e abstinência é tão vaga, que eles não estão cientes de que essas duas práticas são bastante distintas uma da outra; e que a dispensa de um não inclui, de forma alguma, uma dispensação do outro. Se eles obtiveram, legal ou ilegalmente, a isenção da abstinência, isso nem sequer entra em sua mente, que a obrigação de jejuar ainda é obrigatória para eles, durante os quarenta dias inteiros; ou se eles lhes concederam uma dispensa do jejum, concluem que podem comer qualquer tipo de alimento que desejem. Tal ignorância como esta é o resultado natural da indiferença com que os mandamentos e tradições da Igreja são tratados.

Até agora, temos falado da não observância da Quaresma em sua relação com indivíduos e católicos; vamos agora dizer algumas palavras sobre a influência que essa mesma não-observância tem sobre todo um povo ou nação. Há poucas questões sociais que não foram escrupulosamente tratadas pelos escritores públicos da época, que dedicaram seus talentos ao estudo do que é chamado de Economia Política; e tem sido frequentemente uma questão de surpresa para nós, que eles deveriam ter negligenciado um assunto de profundo interesse como este, – os resultados produzidos na sociedade pela abolição da Quaresma, isto é, de uma instituição que, mais do que qualquer outra, mantém na mente do público um sentimento moral aguçado de certo e errado, na medida em que impõe a uma nação uma expiação anual pelo pecado. Nenhum aprofundamento é necessário para ver a diferença entre duas nações, uma das quais observa, a cada ano, uma penitência de quarenta dias em reparação das violações cometidas contra a Lei de Deus, e outra, cujos próprios princípios rejeitam toda essa reparação solene.

ÂNIMO E CONFIANÇA – Que os filhos da Igreja observem corajosamente as práticas quaresmais da penitência. A paz de consciência é essencial para a vida cristã; e, no entanto, não é prometida a ninguém a não ser às almas verdadeiramente penitentes. A inocência perdida deve ser recuperada pela humilde confissão do pecado, quando é acompanhada pela absolvição do Sacerdote; mas que os fiéis estejam em guarda contra o erro perigoso, que os persuadiria de que nada têm a fazer quando perdoados. Lembrem-se da solene advertência dada pelo Espírito Santo nas escrituras sagradas: “A propósito de um pecado perdoado, não estejas sem temor, e não acrescentes pecado sobre pecado” (Eclo 5,5). Nossa confiança de ter sido perdoado deve ser proporcional à mudança ou conversão de nosso coração quanto a nossa maior detestação de nossos pecados passados, e quanto mais sincero nosso desejo de fazer penitência por eles pelo resto de nossas vidas, a nossa confiança de que eles foram perdoados será melhor fundamentada. O homem não sabe, como afirma o Livro sagrado, se ele é digno de amor ou ódio (Ecl 9,1); mas aquele que mantém em si o espírito de penitência, tem todos os motivos para esperar que Deus o ame.

A ORAÇÃO – Entretanto, a corajosa observância do preceito de Jejum e Abstinência da Igreja durante a Quaresma deve ser acompanhada por aquelas outras duas obras eminentemente boas, às quais Deus frequentemente nos incita nas Escrituras: Oração e Esmolas. Assim como sob o termo Jejum, a Igreja compreende todos os tipos de mortificação; assim, sob a palavra Oração, ela inclui todos os exercícios de piedade pelos quais a alma mantém relações com o seu Deus. Frequência mais frequente nos serviços da Igreja, assistência diária à Santa Missa, leitura espiritual, meditação sobre as verdades eternas e a Paixão, sermões ouvidos e, sobretudo, a aproximação dos sacramentos da Penitência e da Sagrada Comunhão – estes são os principais, e isso significa que os fiéis devem oferecer a Deus a homenagem da oração, durante esta época santa.

A ESMOLA – As esmolas compreendem todas as obras de misericórdia para com o nosso próximo, e são unanimemente recomendadas pelos Santos Doutores da Igreja, como sendo o complemento necessário do Jejum e da Oração durante a Quaresma. Deus fez disso uma lei, à qual ele se uniu graciosamente, – que a caridade mostrada aos nossos semelhantes, com a intenção de agradar nosso Criador, será recompensada como se fosse feita a Si mesmo. Quão vividamente isso traz diante de nós a realidade e a sacralidade do laço que a esmola teria que existir entre todos os homens! Tal é, de fato, sua necessidade, que nosso Pai Celestial não aceita o amor de qualquer coração que se recuse a mostrar misericórdia; mas, por outro lado, ele aceita, como genuíno e feito para si mesmo, a caridade de todo cristão que, por uma obra de misericórdia mostrada a um companheiro, está realmente reconhecendo e honrando aquela união sublime que faz todos os homens serem uma só família, com Deus como seu pai. Por isso, as ações das almas feitas com essa intenção não são apenas atos de bondade humana, mas são elevadas à dignidade de atos de religião, que têm Deus como objeto direto e têm o poder de apaziguar sua justiça divina.

Lembremo-nos do conselho dado pelo Arcanjo Rafael a Tobias. Ele estava prestes a se despedir dessa sagrada família e retornar ao céu; e estas foram suas palavras: “Boa coisa é a oração acompanhada pelo jejum e pela esmola, ela é preferível aos tesouros de ouro escondidos, porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna” (Tb 12,8-9). Igualmente forte é a recomendação dada a esta virtude pelo Livro de Eclesiástico: “A água apaga o fogo ardente, a esmola enfrenta o pecado” (3,33). E novamente: “Cale a esmola no coração dos pobres, e ela rogará por ti, contra todo o mal” (Eclo 29,15). O cristão deve manter essas promessas consoladoras sempre ante sua mente, mas mais especialmente durante o tempo da Quaresma. O homem rico deve mostrar aos pobres, cujo ano inteiro é um jejum, que há um tempo em que até ele tem suas privações auto-impostas. A fiel observância da Quaresma naturalmente produz uma poupança; que essa poupança seja dada a Lázaro. Nada, certamente, poderia ser mais oposto ao espírito desta época sagrada, do que manter uma mesa, tão ricamente e delicadamente provida, como em outros períodos do ano, quando Deus nos permite usar todos os confortos compatíveis com os meios que ele nos deu. Mas quão completamente cristão é que durante estes dias de penitência e caridade, a vida do pobre homem deve ser mais confortável, na medida em que a dos ricos compartilha as dificuldades e privações de seus irmãos sofredores em todo o mundo! Pobres e ricos se apresentariam, com toda a beleza do amor fraterno, no Divino Banquete da Festa Pascal.

ESPÍRITO DE RECOLHIMENTO – Há um meio a mais pelo qual devemos assegurar a nós mesmos as grandiosas graças da Quaresma; é o espírito de afastamento e separação do mundo. Nossa vida ordinária, isto é, tal como é durante o resto do ano, deveria ser toda feita para prestar tributo à santa estação da penitência; caso contrário, a impressão salutar produzida em nós pela sagrada cerimônia da quarta-feira de cinzas será apagada em breve. O cristão deve, portanto, proibir-se, durante a Quaresma, de todos os fúteis divertimentos, entretenimentos e festas do mundo em que vive. O mundo (queremos dizer aquela parte que é cristã) jogou fora todas aquelas indicações externas de luto e penitência, que lemos como sendo tão religiosamente observadas nas eras da fé; mas há uma coisa que nunca pode mudar: a justiça de Deus e a obrigação do homem de apaziguar essa justiça. O mundo pode se rebelar tanto quanto contra a sentença, mas a sentença é irrevogável: a menos que vocês façam penitência, todos devem perecer (Lc 13,3). Não podemos esquecer as advertências dadas por nosso próprio Salvador Divino, no Evangelho lido para nós no Domingo de Sexagésima. Ele nos contou como algumas das sementes são pisadas pelos transeuntes ou devoradas pelas aves do céu; como algumas caem entre as pedras ficam ressecados; e como outras ainda são sufocadas pelos espinhos. Sejamos sábios e não poupemos esforços para nos tornarmos aquela terra boa que recebe a Semente Divina e produz cem vezes a colheita da Páscoa que está ao nosso alcance.

ATRAENTE AUSTERIDADE DA QUARESMA – Um sentimento inevitável surgirá na mente de alguns de nossos leitores, enquanto examinam estas páginas, nas quais nos empenhamos em incorporar o espírito da Igreja, tal como se expressa, não apenas na Liturgia, mas também nos decretos dos Concílios e nos escritos dos santos Padres. O sentimento que aludimos é lamentar não ter encontrado, durante este período do Ano Litúrgico, a poesia comovente e requintada que encheu de tal modo os quarenta dias da nossa solenidade natalina. Primeiro veio Septuagésima, lançando sua sombria nuvem sobre aquelas visões encantadoras do Mistério de Belém; e agora entramos numa terra deserta, com espinhos a cada passo e sem fontes de água para nos refrescar. No entanto, não vamos nos queixar. A Santa Igreja conhece nossos verdadeiros desejos e tem a intenção de supri-los. Por isso não devemos nos surpreender com ela insistindo em uma preparação mais severa para a Páscoa do que para o Natal. No Natal deveríamos nos aproximar de nosso Jesus como uma criança; tudo o que ela nos fez então foram os exercícios do Advento, pois os Mistérios de nossa Redenção estavam apenas começando.

E daqueles que foram ao presépio de Jesus, havia muitos que, como os pobres Pastores de Belém, poderiam ser chamados de simples, pelo menos nesse sentido, que eles não perceberam suficientemente nem a santidade de seu Deus Encarnado nem a miséria e culpa de sua própria consciência. Mas agora que esse Filho de Deus Eterno entrou no caminho da penitência; agora que estamos prestes a vê-lo vítima de toda humilhação e sofrendo até mesmo a morte numa cruz; a Igreja não nos poupa, ela nos desperta de nossa ignorância e nossa satisfação pessoal. Ela nos ordena bater no peito, ter remorso em nossas almas, mortificar nossos corpos, porque somos pecadores. Toda a nossa vida deve ser de penitência; almas fervorosas estão sempre fazendo penitência; poderia alguma coisa ser mais justa ou necessária do que fazermos alguma penitência durante estes dias, quando nosso Jesus está jejuando no deserto para ir morrer no Calvário? Há uma frase deste nosso Redentor, aquela dita às filhas de Jerusalém no dia da sua Paixão que devemos aplicar a nós mesmos: Se fazem isso ao lenho verde, o que não farão ao lenho seco? (Lc 23,31). Oh! que revelação é esta! É por misericórdia que Jesus assim fala. A lenha verde só com dificuldade pega fogo, mas a lenha seca rapidamente é queimada.

A Igreja espera que estejamos trabalhando com todas as nossas forças para que possamos suportar o jugo. Para isso serve a Quaresma que ela nos dá. Trilhemos o caminho da penitência e logo, gradualmente, a Luz brilhará para nós. Se estamos agora longe de nosso Deus pelos pecados que estão sobre nós, este tempo sagrado será para nós o que os santos chamam de Vida Purgativa, e nos dará essa pureza que nos permitirá ver nosso Senhor na glória da sua vitória sobre a morte. Se, pelo contrário, já estamos vivendo a vida iluminada, se, durante as três semanas de Septuagésima, bravamente conhecemos a profundidade de nossas misérias, nossa Quaresma nos dará uma visão mais clara d’Aquele que é a nossa Luz; e se fomos capazes de reconhecê-lo como nosso Deus quando o vimos como o Menino de Belém, os olhos de nossa alma não deixarão de reconhecê-lo no divino Penitente do Deserto, ou na sangrenta Vítima do Calvário.

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