Oratório São José

Mística da Quaresma

Ano Litúrgico - Dom Próspero Gueranger

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MÍSTICA DA QUARESMA

Ano Litúrgico – Dom Próspero Gueranger

Não devemos nos maravilhar com o fato de um tempo tão sagrado como a Quaresma estar cheio de mistério. A Igreja, que dispôs a preparação para a festa mais gloriosa, quis que este período de recolhimento e penitência fosse marcado por detalhes importantes, adequados para despertar a fé dos fiéis e sustentar a sua perseverança na obra da expiação anual.

No período da Septuagésima encontramos o número septuagenário que comemora os setenta anos do cativeiro babilônico, após os quais o povo de Deus, purificado de sua idolatria grosseira, deveria ver Jerusalém novamente e ali celebrar a Páscoa. Agora a Igreja propõe à nossa atenção religiosa o número quarenta, que, segundo São Jerónimo, é sempre típico da dor e da aflição.[1]

O NÚMERO QUARENTA E SEU SIGNIFICADO – Lembremo-nos da chuva de quarenta dias e quarenta noites que veio dos tesouros da ira de Deus, quando se arrependeu de ter criado o homem[2], e que afogou a raça humana nas ondas, com exceção de uma família. Consideremos o povo hebreu errante durante quarenta anos no deserto, como castigo pela sua ingratidão, antes de entrar na terra prometida[3]. Escutemos o Senhor, que ordena a Ezequiel, seu profeta, que permaneça deitado sobre o seu lado direito durante quarenta dias, símbolo de quanto duraria o cerco, após o qual Jerusalém seria devastada.

Dois homens têm a missão de representar em suas pessoas no Antigo Testamento as duas manifestações de Deus: Moisés que representa a Lei e Elias que simboliza a Profecia. Ambos chegam a Deus, o primeiro no Sinai[4], o segundo no Horebe, mas ambos não obtêm acesso à divindade, exceto depois de terem sido purificados pela expiação do jejum de quarenta dias.

Referindo-nos a estes acontecimentos memoráveis, compreendemos por que o Filho de Deus, encarnado para a salvação do homem, querendo submeter a sua carne divina aos rigores do jejum, teve que escolher o número de quarenta dias para este ato solene. Apresentamos, então, a instituição da Quaresma em toda a sua majestosa severidade, como um meio eficaz de apaziguar a ira de Deus e purificar as nossas almas. Elevemos, portanto, o nosso pensamento acima dos horizontes estreitos que nos rodeiam; vejamos todas as nações cristãs nestes dias em que vivemos oferecendo ao irritado Senhor este extenso quadragenário de expiação, e esperemos que, como no tempo de Jonas. Que ele também se digne a ser misericordioso com o seu povo este ano.

O EXÉRCITO DE DEUS – Depois destas considerações relativas à duração do tempo que vamos percorrer, é necessário saber da nossa mãe a Igreja, sob que emblema ou símbolo ela considera seus filhos na santa Quarentena. Ela vê neles um imenso exército armado que guerreia dia e noite contra o inimigo de Deus. É por isso que a Quarta-feira de Cinzas chama a Quaresma: Carreira da família cristã. Para alcançar, de fato, a regeneração que nos tornará dignos de recuperar as santas alegrias do aleluia, é necessário triunfar sobre os nossos três inimigos: o diabo, a carne e o mundo. Unidos ao Redentor que, no monte, luta contra a tríplice tentação e contra o próprio Satanás, é necessário estar armado e vigiar sem trégua. Para nos sustentar na esperança da vitória e encorajar a nossa confiança na proteção divina, a Igreja propõe o Salmo, que inclui, entre as orações da Missa, a do primeiro domingo da Quaresma e da qual são retirados vários versículos todos os dias nas várias horas do Ofício.

Por isso, quer que contemos com a proteção que Deus nos estende como escudo; que possamos esperar à sombra de suas asas; que possamos confiar Nele, porque Ele nos livrará das amarras do caçador infernal, que nos rouba a santa liberdade de filhos; que tenhamos a certeza da ajuda dos santos anjos, nossos irmãos a quem o Senhor ordenou que nos guardassem nestes nossos caminhos; eles, respeitosas testemunhas do combate que o Salvador travou contra Satanás, aproximaram-se dele depois da vitória para servi-lo e honrá-lo. Mergulhemos nos sentimentos que a Santa Madre Igreja pretende inspirar em nós e nestes dias de luta, agarremos muitas vezes este belo canto que Ela nos oferece, como a mais completa expressão dos sentimentos que devem dominar os soldados da milícia cristã durante esta santa campanha.

PEDAGOGIA DA IGREJA – Mas a Igreja não se limita a dar-nos, como se quer, uma palavra de ordem contra a surpresa do inimigo; para entreter o nosso pensamento, oferece aos nossos olhos três grandes espetáculos que se desenrolarão dia após dia até à festa da Páscoa, e cada um deles produz em nós emoções piedosas aliadas a uma instrução muito sólida.

CRISTO PERSEGUIDO E CONDENADO À MORTE – Por enquanto, vamos testemunhar o desfecho da conspiração dos judeus contra o Redentor; conspiração que começa a ser tramada e explodirá na Sexta-Feira Santa, quando virmos o Filho de Deus suspenso no madeiro da Cruz. As paixões que borbulham na Sinagoga manifestar-se-ão semana após semana e poderemos acompanhá-las no seu desenvolvimento. A dignidade, a sabedoria e a mansidão da augusta Vítima nos parecerão sempre mais sublimes, mais dignas de um Deus. O drama divino que vimos começar no portal de Belém se desenrola até o Calvário; para segui-lo bastará meditarmos nas leituras do Evangelho que a Igreja nos propõe dia após dia.

PREPARAÇÃO PARA O BATISMO – Em segundo lugar, lembrando-nos que a festa da Páscoa é para os catecúmenos o dia do novo nascimento, o nosso pensamento voará para aqueles primeiros séculos do cristianismo em que a Quaresma era, para os aspirantes ao Batismo, a última preparação. A sagrada Liturgia preservou para nós o traço da antiga disciplina; ouvindo as maravilhosas leituras de ambos os Testamentos com as quais se completou o último toque da última iniciação, daremos graças a Deus que se dignou a nos dar à luz em tempos em que a criança não precisa esperar a maturidade para experimentar as misericórdias divinas. Pensaremos também naqueles novos catecúmenos que, ainda nos nossos dias, esperam nas regiões evangelizadas pelos nossos apóstolos modernos, a grande solenidade do Salvador que vence a morte, para descer, como nos tempos antigos, ao tanque sagrado e emergir com um novo ser.

PENITÊNCIA PÚBLICA – Devemos, finalmente, durante a Quaresma, prestar atenção aos penitentes públicos, que, solenemente expulsos da assembleia dos fiéis na Quarta-feira de Cinzas, foram, durante o curso da Quaresma, objeto da preocupação materna da Igreja, que deveria, se merecesse, admiti-los à reconciliação na Quinta-feira Santa. Um admirável conjunto de leituras, destinadas à sua instrução e a interessar os fiéis a seu favor, desfilará diante dos nossos olhos; porque a Liturgia ainda não perdeu nada, neste momento, das suas tradições energéticas. Recordaremos então quão facilmente nos foram perdoados males que, nos séculos passados, talvez não o foram, senão depois de duras e solenes expiações; pensando, portanto, na justiça do Senhor que permanece imutável, quaisquer que sejam as mudanças que a condescendência da Igreja introduza na disciplina, sentiremos mais fortemente a rejeição da necessidade peremptória de oferecer a Deus o sacrifício de um coração verdadeiramente contrito, e de encorajar com um espírito sincero penitente as satisfações diminuídas que oferecemos à Majestade divina.

RITOS E USOS LITÚRGICOS – Para preservar o caráter austero que lhe cabe no tempo santo da Quaresma, a Igreja tem sido muito reservada há muitos séculos em admitir festas nesta época do ano, porque trazem consigo uma explosão de alegria. No século IV, o Concílio de Laodicéia indicou esta disposição no seu cânon 51, não autorizando festas de santos exceto aos sábados ou domingos. A Igreja grega perseverou neste rigor e só vários séculos depois do Concílio de Laodicéia é que finalmente relaxou um pouco a mão, admitindo a festa da Anunciação no dia 25 de março.

A Igreja Romana manteve esta disciplina durante muito tempo, pelo menos em princípio, mas logo admitiu a festa da Anunciação e, mais tarde, a do Apóstolo São Matias, em 24 de fevereiro. Nos últimos séculos vê-se abrir o seu calendário a outras festas, mesmo no período que corresponde à Quaresma, com grande moderação, porém, por reverência ao espírito da antiguidade.

A razão que tem levado a Igreja Romana a abrir mais facilmente a mão na admissão de festas de santos na Quaresma é que os ocidentais não consideram a celebração de festas incompatível com o jejum, enquanto os gregos pensam o contrário. É por isso que o sábado, que para os orientais é sempre um dia solene, nunca é dia de jejum, exceto o Sábado Santo. Também não jejuam no dia da Anunciação porque é feriado.

Esta ideia dos orientais deu origem, no século VII, a uma instituição que lhes é peculiar. Chamam-lhe Missa dos Pré-santificados, o que é conveniente saber: das coisas consagradas em sacrifício anterior. Todos os domingos da Quaresma, um sacerdote consagra seis hóstias, das quais consome uma no sacrifício; as outras cinco são guardadas para uma comunhão simples que acontece todos os dias dos próximos cinco sem sacrifício. A Igreja Latina não pratica este rito exceto uma vez por ano: Sexta-feira Santa, por uma razão misteriosa que explicaremos em seu lugar.

O início deste rito entre os gregos certamente vem do cânone quadragésimo nono do Concílio de Laodicéia, que prescreve não oferecer o Pão Sacrificial na Quaresma, fora do sábado e do domingo. Nos séculos seguintes, os gregos foram persuadidos, por este cânone, de que a celebração do Sacrifício era incompatível com o jejum; e vemos pela sua polêmica no século XI com o legado Humberto que a Missa dos Pré-santificados (dons) nada tinha a seu favor exceto um cânone do famoso concílio conhecido pelo nome de in Trullo, do ano 692; e os gregos justificaram-no com a ideia de que a comunhão do Corpo e do Sangue do Senhor quebrava o jejum quaresmal.

À tarde, após o ofício de Vésperas, os gregos celebram aquela cerimônia, em que só o sacerdote comunga, como acontece conosco na Sexta-Feira Santa. Houve, repetimos, durante vários séculos uma exceção no dia da Anunciação da Virgem Maria; quebrando o jejum neste feriado, celebra-se o Santo Sacrifício e os fiéis podem comungar. Parece que nas Igrejas Ocidentais o cânone disciplinar do Concílio de Laodicéia nunca foi aceito; e não vemos nenhum sinal em Roma da suspensão do Santo Sacrifício na Quaresma.

A falta de espaço nos obriga a ignorar detalhes que se referem a este capítulo; no entanto, ainda temos algo a dizer sobre os costumes da Quaresma no Ocidente. Demos a conhecer e explicamos algumas particularidades do Tempo da Septuagésima: a suspensão do Aleluia, o uso da cor púrpura nas vestes sagradas, a supressão da dalmática no diácono e da túnica no subdiácono e dos cantos de alegria: Gloria in excelsis Deo e Te Deum laudamus, ambos suspensos; o Tracto que substitui o Aleluia na Missa pelo seu verso, o Ite Missa é substituído por outra fórmula, a oração penitencial que se diz sobre o povo no final da Missa nos dias de semana não ocupados pela festa de um santo, as Vésperas matinais antes do meio-dia todos os dias exceto domingo, ritos todos já conhecidos dos leitores. No que diz respeito às cerimônias atualmente preservadas, apenas podemos notar as orações do final das Horas que são feitas de joelhos, e o uso generalizado do coro permanecer ajoelhado nesses mesmos dias durante o Cânon da Missa.

As Igrejas Ocidentais, por sua vez, praticaram vários ritos durante a Quaresma que caíram em desuso há muitos séculos, embora alguns sejam preservados até hoje em alguns lugares. O mais impressionante de tudo consistia em abrir uma imensa cortina, geralmente roxa, entre o coro e o altar, para que nem o clero nem o povo pudessem ver os santos Mistérios que se celebravam por trás do véu. Esse véu era um símbolo do luto penitencial ao qual o pecador deve se submeter para merecer contemplar novamente a majestade de Deus daquele que ofendeu o olhar divino com seus males.[5] Significava também as humilhações de Cristo que foram um escândalo para o orgulho da Sinagoga e que desaparecerão repentinamente, como um véu que se retira por um instante para dar lugar ao brilho da Ressurreição[6]. Este uso persiste em vários locais, nomeadamente na área metropolitana de Paris (e na primazia de Toledo).

Havia também o costume em muitas Igrejas de velar a Cruz e as imagens dos Santos desde o início da Quaresma, para inspirar uma compunção mais viva nos fiéis que estavam privados da consolação de fixar o olhar naqueles objetos caros à sua piedade. Esta prática, que também se conservou em alguns lugares, é, no entanto, menos sólida que a da Igreja Romana, que não cobre cruzes e imagens senão no momento da Paixão, como veremos em vez disso.

Antigos cerimoniais da Idade Média informam-nos que costumavam fazer muitas procissões de uma igreja a outra durante a Quaresma, principalmente às quartas e sextas-feiras. Nos mosteiros eram realizados nos claustros e descalços[7]. Imitavam as Estações de Roma, diárias na Quaresma e que durante muitos séculos começaram com uma procissão solene até a igreja estacional.

A Igreja, finalmente, sempre multiplicou as orações na Quaresma. Até recentemente, a disciplina que as catedrais e igrejas colegiadas, não isentas por costume contrário, deviam acrescentar às Horas Canônicas, na segunda-feira o Ofício dos Defuntos; às quartas-feiras os Salmos Graduais e às sextas-feiras os Salmos Penitenciais.

Nas igrejas da França, todo o Saltério era acrescentado semanalmente ao Ofício ordinário[8].

 


[1] Comm. Ezechiel, c. XXIX.

[2] Gênesis 7, 12.

[3] Números 14, 33.

[4] Êxodo, 24, 18.

[5] Sabemos que de acordo com a antiga disciplina da Igreja, os penitentes públicos estavam sujeitos a um regime especial de penitência durante a Santa Quaresma e começava com a imposição de cinzas sobre eles e a expulsão da Igreja, terminando na Quinta-feira Santa para a reconciliação pública. Agora, como regime a penitência estrita enfraquecia, a ideia da penitência pública tomava forma entre a maioria dos fiéis. Vemos efetivamente clérigos e fiéis muito em breve solicitando espontaneamente a imposição das cinzas e reconhecendo-se, de certa forma, como penitentes públicos; o que equivale a supor que toda a comunidade dos fiéis esteve em penitência pública durante a Quaresma.

Mas, embora considerados penitentes públicos, não podiam, evidentemente, todos os fiéis ser expulsos da igreja. Seria necessário, porém, renunciar completamente a lembrá-los de algumas verdades capitais que a Liturgia inculcava nos penitentes públicos? Os pecadores mereciam ser expulsos da igreja como Adão foi expulso do Paraíso por seu pecado; sem penitência seria impossível para eles alcançar o reino de Deus e a visão de Sua Majestade. Mas a Liturgia não tentou inculcar-lhes estas verdades de forma gráfica, escondendo dos seus olhos o altar, o santuário, a Imagem de Deus e dos santos, unidos a Deus na glória celeste? (Cf. Callewaert, Sacris erucliri, p. 699).

[6] Honório de Autun, Gemma animae, 1, III, c. LXVI.

[7] Martène, De antiquis Ecclesiae ritibus, t. III, c. XVIII.

[8] Ibid.

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