SÃO JERÔNIMO (30/09)

SÃO JERÔNIMO, Presbítero, Confessor e Doutor – 3ª classe
O eremita – “Vidal me é desconhecido, não quero nada com Melécio e não sei quem é Paulino;[1] quem está com a cátedra de Pedro[2], esse é meu.” Assim, por volta do ano 376, das solidões da Síria, agitado pelas competições episcopais que desde Antioquia trouxeram inquietação a todo o Oriente, um monge desconhecido que implorava luz para a sua alma resgatada com o sangue do Senhor[3] dirigiu-se ao pontífice Dâmaso por volta do ano 376. Este era Jerônimo, natural da Dalmácia.
Longe de Stridon, a terra semibárbara onde nasceu, da qual preservou a aspereza e a seiva vigorosa; longe de Roma, onde o estudo das belas letras e da filosofia não o preservou das quedas mais tristes: o medo dos julgamentos de Deus o levou ao deserto de Cálcis. E ali, durante quatro anos, sob um céu de fogo, ele iria macerar seu corpo com penitências horríveis; como remédio mais eficaz e austeridade meritória para a sua alma apaixonada pelas belezas clássicas, propôs sacrificar os seus gostos ciceronianos pelo estudo da linguagem primitiva dos Livros Sagrados.
Trabalho muito mais difícil então do que hoje, pois dicionários, gramáticas e estudos de toda espécie pavimentaram os caminhos da ciência. Quantas vezes, descontente, Jerônimo se desesperou com o sucesso! Mas provou a veracidade desta frase, que mais tarde formulou: “Amai o conhecimento das Escrituras e não amareis os vícios da carne”.[4] E voltando ao alfabeto hebraico, soletrou incessantemente aquelas letras sibilantes e aspirantes, cuja conquista heroica sempre lhe lembrava o trabalho que lhe custaram, pela aspereza com que a partir de então, como ele disse, começou a pronunciar o latim.[5]
Toda a energia de sua natureza ígnea foi derramada neste trabalho: se dedicou a ele com toda a sua alma e canalizou-se nele para todo o sempre.[6] Deus ficou magnificamente grato pela reverência que assim foi prestada à sua palavra: da simples cura moral que Jerônimo esperava, alcançou a elevada santidade que hoje veneramos nele; das lutas do deserto, aparentemente estéril para outros, emerge um daqueles a quem se diz: Vós sois o sal da terra, sois a luz do mundo[7]. E Deus colocou esta luz a seu tempo no candelabro, para iluminar todos os que estão na casa.[8]
Secretário do Papa – Roma voltava a ver, mas muito transformado, o estudante de outros tempos; por sua santidade, ciência e humildade, todos o aclamaram como digno do sumo sacerdócio.[9] Dâmaso, doutor virgem da Igreja Virgem[10], encarregou-o de responder em seu nome às perguntas do Oriente e do Ocidente, e fez com que ele começasse por revisar o Novo Testamento em latim, com base no texto grego original, as grandes obras bíblicas que imortalizaria o seu nome na gratidão do povo cristão.
O vingador de Maria – Entretanto, a refutação de Helvídio, que ousou pôr em dúvida a virgindade perpétua da Mãe de Deus, mostrou em Jerônimo o polemista incomparável, cuja energia Joviniano, Vigilâncio, Pelágio e alguns outros iriam testar, com o passar do tempo. E como recompensa pela sua honra vingada, Maria lhe levava todas as almas nobres; ele as guiava pelo caminho das virtudes, que são a glória deste mundo; com o sal das Escrituras, ele as preservou da corrupção com que o império estava morrendo.
Diretor de Almas – Estranho acontecimento para o historiador sem fé: eis que em torno deste Dálmata, quando morre a Roma dos Césares, brilham de repente os mais belos nomes da Roma antiga. Acreditava-se que eles estavam extintos porque a glória da cidade-rainha foi obscurecida nas mãos dos recém-chegados; mas, como que por direito de nascimento, para fundar novamente, e desta vez na sua verdadeira eternidade, a capital que deram ao mundo, esses nomes reaparecem ao mesmo tempo que a cidade vai retomar o seu destino, depois de ter sido purificada com as chamas que os bárbaros acenderão nela.
A luta é muito diferente agora; mas a sua posição é à frente do exército que salvará o mundo. Os sábios, os poderosos, os nobres são raros entre nós, disse o Apóstolo quatro séculos antes;[11] em nossos dias eles são numerosos, protesta Jerônimo, numerosos entre os monges.[12]
Naqueles dias de origem ocidental, o melhor do exército monástico era a falange patrícia; herdará dele para sempre seu caráter de antiga grandeza; mas nas suas fileiras eles também vêem, com os mesmos direitos que os seus pais e irmãos, a virgem e a viúva, e às vezes a esposa ao lado do marido. Marcela é a primeira a receber a direção de Jerônimo e quando o mestre desaparecer, Marcela será, apesar da humildade, o oráculo consultado por todos nas dificuldades das Escrituras.[13] E como ela, Fúria, Fabíola, Paula, que lembram dos seus antepassados os Camilos, os Fábios, os Cipiões. Já é demais para Satanás, príncipe do mundo,[14] que acreditava que as glórias da antiga cidade seriam suas para sempre; as horas do Santo na Cidade estão contadas.
Eustóquio, filha de Paula, mereceu que Jerônimo lhe dirigisse o sublime manifesto, embora cheio de tempestades, em que o santo, ao elogiar a virgindade, não se importa se a conspiração de falsos monges surgir contra ele, devido às suas palavras mordazes, das virgens loucas e os clérigos indignos. A prudente Marcela anuncia inutilmente a tempestade; Jerônimo tira-a e ousa dizer o que outros lindamente se atrevem a fazer.
Ele não levou em conta a morte de Dâmaso, que ocorre nesta mesma época.
Em Belém – Levado pelo redemoinho, o justiceiro regressa ao deserto: mas não é para Cálcis, mas para a tranquila Belém, para onde as memórias da infância do Salvador levaram este homem magnânimo; onde Paula e a filha vão fixar residência para não perderem as lições que preferem a tudo, para adoçar as suas amarguras e curar as feridas do leão cuja voz poderosa não deixará de manter alertas os ecos do Ocidente. Honra a esses bravos homens! A sua fidelidade, a sua ambição de saber, as suas piedosas importunações trarão ao mundo um tesouro inestimável, a tradução autêntica[15] dos livros sagrados que teve que ser feita por causa dos judeus que trataram a Igreja como uma falsificadora quando viram a imperfeição da antiga versão em itálico e suas inúmeras variantes.
Ora, cada livro traduzido trazia uma crítica nova e nem sempre rancorosa: restrições por parte dos covardes, que se alarmavam com tamanha autoridade dos Setenta na Sinagoga e na Igreja; astúcia interessada dos donos de manuscritos que tinham páginas empurpuradas, unciais esplêndidos, letras em prata e ouro e que agora seriam desprezados. “Ah! Que fiquem com a metalurgia e deixem conosco os nossos pobres cadernos”, exclama Jerônimo irritado. “E são vocês que me obrigam a aguentar tantas bobagens e tantos insultos”, diz ele a quem incentiva o seu trabalho; “para interromper as coisas, seria melhor me calar.”
Nem a mãe nem a filha entenderam assim; e Jerônimo não resistia.[16] Todas as santas amizades de antigamente tiveram sua parte neste comércio estudioso. Jerônimo não negou a ninguém a ajuda de sua ciência e alegremente inventou desculpas pelo fato de que metade da raça humana parecia mais privilegiada nesse aspecto: “Principia, minha filha em Jesus Cristo, sei que muitos vêem isso como errado que às vezes tenho que escrever para mulheres; mas deixe-me dizer aos meus detratores: se os homens me perguntassem sobre as Escrituras, eu não teria que responder a elas.”[17]
Mas de repente uma mensagem de alegria sacode os mosteiros fundados em Efrata: em Roma nasceu outra Paula, filha de um irmão de Eustáquio e de Leta, filha cristã de Albino, pontífice dos falsos deuses. Consagrada ao Esposo antes de nascer, ela repete, gaguejando nos braços do sacerdote de Júpiter, o Aleluia dos cristãos; ele sabe que além das montanhas e dos mares tem outra avó e também uma tia consagrada a Deus; quer ir embora: “Manda para mim”, escreve Jerônimo na sua alegria à mãe; “serei seu professor e seu benfeitor. Vou carregá-la nos meus velhos ombros; ajudarei sua boca que já gagueja a formar suas palavras e disso me sentirei mais orgulhoso que Aristóteles, pois ele não educou mais que um rei da Macedônia, e prepararei para Cristo uma serva, uma esposa, uma rainha destinada a uma cadeira nos céus.”[18]
Os últimos dias – Belén, aliás, viu a doce menina. Ainda muito jovem, teve que assumir a responsabilidade de dar continuidade ao trabalho do seu povo ali. Junto com o velho moribundo, ela era seu anjo, passando deste mundo para a eternidade.
O momento supremo precedido para ele a hora das lágrimas profundas. A velha Paula foi a primeira a começar a cantar: Preferi ser humilde na casa de Deus, a habitar nos palácios dos pecadores.[19] Diante da prostração mortal em que Jerônimo parecia aniquilado para sempre,[20] uma devastada Eustoquio conteve as lágrimas. Por insistência da filha, ele continuou a viver para cumprir as promessas feitas à mãe. E assim o vemos terminar suas traduções e também continuar seus comentários sobre o texto; vai passar de Isaías ao profeta Ezequiel, quando de repente a dor indizível daqueles tempos cai sobre o mundo e sobre ele: “Roma caiu; a luz da terra se apagou; numa única cidade, todo o universo sucumbiu. O que fazer senão ficar em silêncio e pensar nos mortos?”
Era preciso pensar também nos inúmeros fugitivos que fluíam, despojados de tudo, em direção aos lugares santos; e Jerônimo, o lutador implacável, não sabia negar a nenhum infeliz o seu coração e as suas lágrimas. Preferindo ainda mais praticar do que ensinar as Escrituras, ele ocupava seus dias com os deveres da hospitalidade. Só restava a noite para seus olhos quase cegos estudarem. Amava muito os seus estudos, nos quais esquecia as misérias do dia e se alegrava em atender aos desejos da filha que Deus lhe havia dado. Leia-se o prólogo de cada um dos quatorze livros de Ezequiel e verá que parte corresponde à virgem de Cristo nesta obra, que foi contestada pelas angústias do tempo, pelas doenças de Jerônimo e por suas últimas lutas contra a heresia.
Porque dir-se-ia que a heresia aproveitou a oportunidade da convulsão do mundo para uma nova audácia. Fortes com o apoio que lhes foi dado pelo bispo João de Jerusalém, os pelagianos, armados uma noite de tocha e espada, lançaram-se contra o mosteiro de Jerônimo e contra os das virgens, que, após a morte de Paula, reconheceram Eustóquio como sua mãe, semeando massacre e fogo. Apoiada virilmente pela sobrinha Paula, a Jovem, a santa reuniu as filhas e conseguiu abrir caminho em meio às chamas. Mas a ansiedade desta noite terrível acabou por consumir-lhe as forças exaustas. Jerônimo enterrou-a junto à manjedoura do Menino Deus, como já fizera com a sua mãe, e, deixando inacabado o seu comentário sobre Jeremias, também ele se preparou para morrer.
Vida – São Jerônimo nasceu em Stridon, na Dalmácia, entre 340 e 345. Seus pais o enviaram a Roma para estudar gramática e retórica. Deixou-se vencer por algum tempo por prazeres e triunfos, mas logo pediu o batismo ao Papa Libério, e então, após sua estadia em Trier com a corte imperial, retirou-se para Aquileia e pouco depois foi para o Oriente. Permaneceu em Antioquia durante a Quaresma de 374 ou 375. Estando gravemente doente, prometeu não ler mais livros profanos.
Uma vez curado, partiu para o deserto de Cálcis, a sudeste de Antioquia, e lá viveu como eremita e aprendeu hebraico. Retornando a Antioquia, foi ordenado sacerdote e foi para Constantinopla, onde conheceu São Gregório de Nazianzo. Em 382 esteve em Roma: o Papa São Dâmaso tomou-o como secretário e aconselhou-o a estudar a Sagrada Escritura e a rever a tradução dos Evangelhos e do Saltério. Ele combinou pregação e direção espiritual com seu estudo.
Após a morte do Papa em 384, Jerônimo deixou Roma. Com Paula e Eustáquio visitou a Palestina, o Egito, e se estabeleceu em Belém em 386. Paula construiu um mosteiro para ele e seus companheiros e outro para ela e suas filhas.
Desde então sua vida foi totalmente dedicada ao estudo das Escrituras, à tradução dos Livros Sagrados e à orientação espiritual através de suas Conferências e Cartas. Ele morreu em 419 ou 420, aos noventa e dois anos. Seu corpo é venerado em Roma, na Igreja de Santa Mara Maior.
O Santo – Completais, ó Santo ilustre, a brilhante constelação dos Doutores no céu da Santa Igreja. A aurora do dia eterno já está anunciada; o Sol da justiça aparecerá em breve no vale do julgamento. Modelo de penitência, ensinai-nos o temor que preserva ou repara, dirigi-nos pelos caminhos austeros da expiação. Monge, historiador dos grandes monges, pai dos solitários atraídos como vós a Belém pelo cheiro mais doce da Infância divina, sustentai o espírito de trabalho e de oração na Ordem monástica, muitas de cujas famílias herdaram o vosso nome. Flagelo dos hereges, uni-nos à fé romana; Guardião do rebanho, preservai-nos dos lobos e mercenários; Vingador de Maria, fazei com que a virgindade floresça cada vez mais no mundo.
O Doutor – Ó Jerônimo, a vossa glória participa sobretudo da glória do Cordeiro. A chave de Davi[21] foi concedida a vós para abrir os muitos selos das Escrituras e nos mostrar Jesus escondido em seus escritos. E, por isso, a Igreja da terra hoje vos louva e vos apresenta aos seus filhos como intérprete oficial do Livro inspirado que a guia aos seus destinos.
Ao mesmo tempo que realiza o vosso culto, dignai-vos aceitar a nossa gratidão pessoal. Que o Senhor, através de vossas orações, nos renove no respeito e no amor que sua divina Palavra merece. Através de vossos méritos, que os eruditos e suas sábias pesquisas sobre o depósito sagrado se multipliquem. Mas ninguém se esqueça: é preciso ouvir Deus de joelhos se quisermos compreendê-lo.
Deus impõe-se e não permite discussão: porém, entre as diversas interpretações que podem suscitar as suas mensagens divinas, é permitido procurar, sob o olhar da sua Igreja, qual é a verdadeira; e é igualmente louvável analisar incessantemente as augustas profundezas.
Feliz é aquele que vos segue nestes estudos sagrados! Vós dissestes: “Viver entre tais tesouros, ser cativado por eles, não conhecer nem procurar mais nada, isso já não é viver mais no céu do que na terra? Aprendamos com o tempo aquilo cuja ciência sempre permanecerá conosco.”[22]
(GUERANGER, Dom Prospero. El Año Litúrgico: tomo V, ano 1954, pp. 493-504)
[1] Carta XV, al. LVII.
[2] Carta XV, al. LVIII.
[3] Ibid.
[4] Carta CXXV, al. IV, a Rústico.
[5] Ibid.
[6] “Hebraeam linguam quam ego ab adolescentia multo labore ac sudore ex parte didici, et infatigabili meditatione non desero, ne ipse ab ea deserar.” Carta CVIII, al. XXVII, a Eustóquio.
[7] Mateus V, 13-14.
[8] Ibid., 15.
[9] Carta XLV, al. L, a Pammaquio.
[10] Carta CXXIII, al. XI, a Ageruchia.
[11] I Cor I, 26.
[12] Carta CXXVI, al. XXVI, a Pammaquio.
[13] Carta CXXVII, al. XVI, a Principia. Et quia valde Prudens erat, sic ad inter rogat a respondebat, ut etiam sua non sua diceret…, ne virili sexui, et inter dum sacerdotibus, de obscuris et ambiguis sciscitantibus, facere videretur iniuriam.
[14] João XIV, 30.
[15] Concílio Tridentino, Sessão IV.
[16] Quia vos cogitis…, cogor…, cogitis… (Passim).
[17] Carta LXV, al. CVL, Principia.
[18] Carta CVII, al. VII, a Laeta.
[19] Salmo LXXXIII, 11. Carta CVIII, al. XXVII, a Estoquio.
[20] Carta XCIX, al. XXXI, a Teófilo.
[21] Apocalipse III, 7.
[22] Carta LIII a Paulino.

