SANTAS PERPÉTUA E FELICIDADE, Mártires – 3ª classe (06/03)

As Atas do martírio de Santa Perpétua, Santa Felicidade e seus companheiros, constitui um dos maiores tesouros hagiológicos que já chegou até nós. No século IV, era costume ler publicamente essas atas nas igrejas da África. O povo as tinha em tão grande estima que Santo Agostinho foi forçado a publicar um protesto para evitar que fossem considerados em pé de igualdade com a Sagrada Escritura. É um documento puramente humano, claro, mas que preserva de forma singularmente vívida as palavras das duas mártires.
Durante a perseguição empreendida pelo imperador Severo, cinco catecúmenos foram presos em Cartago no ano 205. Estes eram Revocato, Felicidade (sua companheira de escravidão, que estava grávida há vários meses), Saturnino, Secúndulo e Víbia Perpétua. Esta última tinha vinte e dois anos, era esposa de um homem abastado e mãe de um menino. Seus pais e dois de seus irmãos ainda estavam vivos, enquanto o terceiro de seus irmãos, chamado Dinócrates, havia morrido aos sete anos de idade. A estes cinco prisioneiros juntou-se Sáturo, que os instruiu na fé e se recusou a abandoná-los.
O pai de Perpétua, de quem ela era filha favorita, era um pagão já de idade bastante avançada; sua mãe provavelmente era cristã, assim como um de seus irmãos, e o outro ainda era catecúmeno. Os prisioneiros foram colocados sob vigilância em uma casa particular. Perpétua narra assim seus sofrimentos:
“Eu ainda estava com meus companheiros. Meu pai, que me amava muito, tentou me dar motivos para enfraquecer minha fé e me desviar de meu propósito. Eu lhe respondi: ‘Pai, não vês esse cântaro ou jarro, ou como quiser chamá-lo?… Acaso pode chamá-lo por um nome que não o designe pelo que ele é?’ Ele respondeu: ‘Não’. ‘Bem, não posso me chamar por um nome que não signifique o que sou: cristão’. Ao ouvir a palavra ‘cristão’, meu pai se lançou sobre mim e tentou arrancar meus olhos, mas só me bateu um pouco, pois meus companheiros o impediram… Agradeci a Deus pelo descanso de não ver meu pai por algum tempo… Naqueles dias recebi o batismo e o Espírito me levou a pedir nada mais do que a graça de suportar o martírio. Pouco depois, transferiram-nos para uma prisão, onde tive muito medo, porque nunca tinha vivido numa escuridão tão grande. Que dia horrível! O calor era insuportável porque a prisão estava lotada. Os soldados nos trataram brutalmente. Para piorar a situação, eu já estava com dores no ventre. Depois Tércio e Pompónio, os dois santos diáconos que nos trouxeram os sacramentos, pagaram aos soldados para nos transferirem, por algumas horas, para um canto menos mau da prisão e nos darem algum alívio. Todos os homens se afastaram um pouco e eu amamentei meu filho pequeno, que estava muito fraco por falta de comida. Expressei para minha mãe o quanto isso estava me deixando triste, encorajei meu irmão e confiei a ambos os cuidados com meu filho pequeno. Fiquei muito triste em vê-los sofrer por minha causa. Durante vários dias fiquei muito deprimida; finalmente consegui que permitissem que meu filho ficasse comigo na prisão; isto tirou-me a principal das minhas preocupações, com as quais recuperei imediatamente a saúde, de modo que a prisão começou a parecer um palácio, onde fui mais feliz do que em qualquer outro lugar.
Meu irmão me disse um dia: ‘Irmã, agora desfrutas de grande favor do céu; peça a Deus que lhe diga se o martírio ou a liberdade a aguardam.’ Eu sabia que Deus não poderia deixar de me ouvir porque eu estava sofrendo por Ele, e lhe disse, cheio de confiança: ‘Amanhã te darei a resposta de Deus, irmão.’
Então orei a Deus, e sua resposta foi a seguinte: Vi uma escada de ouro, extraordinariamente longa, subindo ao céu, mas tão estreita que apenas uma pessoa poderia subir. Em ambos os lados havia todo tipo de armas penduradas: espadas, lanças, ganchos, punhais. Estavam dispostos de tal forma que quem subia descuidadamente, sem olhar para cima, recebia imediatamente uma série de ferimentos. Ao pé da escada havia um imenso dragão, que perseguia quem queria subir e tentava impedi-lo de fazê-lo. O primeiro a subir foi Sáturo, que se entregou espontaneamente por nós, pois nos instruiu na fé e estava ausente no momento em que fomos feitos prisioneiros. Quando chegamos ao topo da escada, Sáturo virou-se e disse-me: ‘Perpétua, te espero aqui; mas tome cuidado para que o dragão não ti morda’. Eu respondi: ‘Em nome de Jesus Cristo, ele não vai me morder’. Imediatamente o dragão afastou a cabeça, como se tivesse medo de mim, e colocou-a no primeiro degrau, de modo que para dar o primeiro passo tive que pisar na sua testa. Continuei subindo e vi um grande jardim, no centro do qual estava um homem alto, de cabelos brancos, vestido de pastor, ordenhando suas ovelhas; ao redor havia milhares de pessoas vestidas de branco. O homem levantou a cabeça, fixou os olhos em mim e disse: ‘Bem-vinda, minha filha.’ E ele me chamou e me deu alguns queijos; peguei-os nas mãos e comi-os; e todos ao nosso redor disseram: Amém.
Acordei quando ouvi aquela palavra e minha boca ainda tinha um aroma muito agradável. Contei imediatamente o que havia acontecido ao meu irmão e ambos entendemos que o martírio nos esperava e renunciamos a toda esperança deste mundo.
Pouco depois, espalhou-se o boato de que iriam nos julgar. Meu pai veio da cidade, muito angustiado, na tentativa de me desviar da minha resolução. Ele me disse: ‘Minha filha, tenha piedade dos meus cabelos brancos. Tenha piedade de seu pai, se sou digno de ser chamado de pai; tenha piedade de mim que a eduquei e sempre a preferi a seus irmãos. Não tens nada a me censurar. Pense em sua mãe e na irmã de sua mãe; pensa, acima de tudo, em teu filho, que não será capaz de sobreviver sem ti. Abandone teu orgulho e não nos arruíne, pois nunca mais poderemos falar como homens livres, se alguma coisa acontecer contigo’.
Assim falou meu pai, cheio de amor por mim, beijando minhas mãos e ajoelhando-se diante de mim; ficou tão emocionado que não me chamou mais de ‘filha’, mas de ‘senhora’. Isso me fez sofrer, porque eu compreendi que meu pai seria o único que não se alegraria com meu martírio. Consolei-o o melhor que pude, dizendo: ‘As coisas acontecerão como Deus quiser, pois estamos em Suas mãos e não nas nossas’. E meu pai saiu muito angustiado.
Outro dia, quando estávamos comendo, fomos repentinamente chamados ao tribunal e levados ao mercado. A notícia se espalhou rapidamente e uma enorme multidão veio. Eles nos colocaram em uma plataforma em frente ao juiz, que era Hilariano, o procurador da província, já que o precônsul acabara de falecer. Todos os que foram julgados antes de mim confessaram sua fé.
Quando chegou a minha vez, meu pai se aproximou com meu filho nos braços e, me fazendo ficar descendo da plataforma, ele me implorou: ‘Tenha pena de seu filho’. O presidente Hilariano juntou-se às orações de meu pai, dizendo-me: ‘Tenha pena dos cabelos brancos de teu pai e da tenra infância de teu filho. Ofereça sacrifícios pela prosperidade dos imperadores’.
Eu respondi: ‘Não!’
‘És cristã?’, Hilariano me perguntou.
Eu respondi: ‘Sim, sou cristã’.
Como meu pai persistia em tentar me desviar da minha resolução, Hilariano mandou expulsá-lo e os soldados bateram nele com uma bengala. Isso me machucou como se tivessem me espancado, pois foi horrível ver meu pai sendo maltratado… Então, o juiz condenou todos nós às feras e voltamos cheios de alegria para a prisão. Como meu filho estava acostumado com o peito, implorei a Pompônio que o trouxesse para a prisão, mas meu pai se recusou a deixá-lo vir. Mas Deus providenciou as coisas para que meu filho não sentisse falta do peito e o leite dos meus seios não me fizesse sofrer”.
Secúndulo aparentemente morreu na prisão antes do julgamento. Antes de proferir a sentença, Hilariano ordenou que Revocato e Saturnino fossem chicoteados e que Perpétua e Felicidade levassem tapas. As mártires foram reservadas para os espetáculos que seriam oferecidos aos soldados durante as festividades de Geta, a quem seu pai, Severo, havia nomeado César quatro anos antes, enquanto Augusto havia nomeado seu filho de Caracala.
Santa Perpétua relata assim outra de suas visões:
“Alguns dias depois, enquanto eu rezava, o nome de Dinócrates me escapou. A coisa me surpreendeu muito, pois eu já não pensava nele. Logo comprendi que devia rezar por ele e assim o fiz muito fervor e insistência. Naquela mesma noite tive uma visão. Vi Dinócrates saindo, suado e com sede, de um lugar muito escuro onde havia muita gente; em seu rosto pálido dava para ver a ferida que ele tinha quando morreu. Dinócrates era meu irmão segundo a carne e morreu aos sete anos de idade, consumido por uma terrível gangrena facial. Eu estava orando por ele; mas entre os dois havia um grande abismo, de modo que não podíamos aproximar-se um do outro. Perto dele havia uma fonte; mas a borda era muito alta, de modo que Dinócrates tinha que ficar na ponta dos pés para beber. Mas nem assim conseguia alcançar a água, porque a borda era alta demais para ele; quando acordei, entendi que meu irmão estava sofrendo. Porém, senti grande confiança de que poderia ajudá-lo e orei a Deus por ele até o dia em que nos transferiram para o quartel-prisão, pois estávamos destinados a lutar com feras durante as festas que seriam celebradas no quartel em homenagem a César Geta. Continuei orando dia e noite por meu irmão, com muitas lágrimas.
Quando se aproximou o dia do martírio, tive uma visão. Vi o mesmo lugar onde meu irmão estava antes, mas agora estava cheio de luz. Dinócrates estava limpo, bem vestido e muito fresco; onde antes estava o ferimento facial, agora havia apenas uma cicatriz; e a borda da fonte estava agora na altura do peito; a água jorrava constantemente e na beirada havia um vaso dourado cheio de água. Dinócrates se aproximou e começou a beber e a água da vasilha não acabou. Dinócrates bebeu até se fartar e depois foi embora, brincando como uma criança. Acordei com a certeza de que não estava mais sofrendo.
Poucos dias depois, Pudente, o chefe do presídio, começou a nos mostrar alguma consideração e a permitir que fôssemos visitados, pois havia percebido nosso grande poder. Pouco antes do dia da festa, meu pai veio me ver, dominado pela dor, e começou a puxar a barba, a deitar-se no chão, a amaldiçoar a sua velhice e a dizer coisas que teriam comovido o mais durão dos homens. Senti grande compaixão por ele.
Na véspera do dia do martírio tive outra visão. Vi o diácono Pompônio aproximar-se e bater com força na porta da prisão. Fui abri-la e encontrei-o vestido com uma túnica sem cinto e com sapatos muito estranhos. Pompônio me disse: ‘Perpétua, estamos te esperando; venha comigo.’ Então ele me pegou pela mão e começamos a caminhar penosamente por um caminho acidentado e desagradável, até chegarmos ao anfiteatro. Pompônio me conduziu ao centro do circo e me disse: ‘Não tenha medo; estou contigo e contigo sofrerei’: então ele foi embora. Levantei os olhos e vi uma multidão imensa. Como sabia que estava condenada às feras, fiquei surpresa por não ver nenhuma na arena. Então um egípcio desagradável apareceu com seus servos para lutar comigo. Mas ao mesmo tempo apareceu uma tropa de jovens que veio me defender. Trocaram as minhas roupas pelas de homem e me ungiram com óleo de combate; e vi que o egípcio caiu no pó diante de mim.
Então apareceu um homem tão alto que sua cabeça se projetava acima do anfiteatro; ele estava vestido com uma túnica roxa sem cinto e no centro do peito pendiam duas fitas; suas sandálias eram curiosamente tecidas com ouro e prata; ele tinha um bastão como o dos dirigentes dos atletas e nas mãos carregava uma bandeja verde com maçãs douradas. Ele ordenou que a multidão se calasse e disse: ‘Se o egípcio derrotar Perpétua, ele terá o direito de decapitá-la com a espada; e se Perpétua derrotar o egípcio, ela receberá esta bandeja como recompensa.’ Depois de dizer isso, ele saiu. E o egípcio e eu começamos a bater um no outro. O egípcio tentou agarrar meus pés, mas eu continuei batendo em seu rosto com os calcanhares; e comecei a voar e a acertá-lo de cima.
Vendo que a luta estava diminuindo, esfreguei as mãos. Consegui agarrar sua cabeça e fazê-lo cair de cara no chão; então coloquei meu pé em seu rosto. A multidão gritava bem alto, enquanto meus companheiros cantavam salmos. E me aproximei do líder dos atletas, que me entregou a bandeja, me beijou e disse: ‘A paz esteja contigo, minha filha.’ E me aproximei triunfalmente da Porta da vida.[1] Naquele mesmo momento acordei. Então entendi que minha luta não seria contra feras, mas contra o diabo, mas que sairia vitoriosa. Escrevi isso até a véspera dos jogos; o que acontecer nos jogos será escrito por quem se sentir chamado a fazê-lo”.
São Sáturo também nos deixou uma visão escrita que teve. Os anjos conduziram ele e seus companheiros a um lindo jardim, onde encontraram os mártires Jocundo, Saturnino e Artáxio, que haviam morrido recentemente na fogueira, e Quinto, que havia morrido na prisão. Então os anjos os levaram a um palácio luminoso, onde estava sentado um velho de cabelos brancos e rosto jovem, “cujos pés não vimos”; À direita e à esquerda do Ancião estavam muitos outros Anciãos que cantavam em unidade: “Santo, Santo, Santo.” Sáturus e seus companheiros pararam diante do trono, beijamos o Ancião, que passou a mão em nossos rostos.[2] E os outros Anciãos nos disseram: “Levantai-vos.” E nós nos levantamos e demos-lhes o beijo da paz. Aí os Anciãos nos disseram: “Ide para a lutar.” Saturo disse a Perpétua: “Agora tens tudo o que podes desejar”. Perpétua respondeu: “Louvado seja Deus, que me deu felicidade no mundo e me deu felicidade ainda maior aqui”.
Saturo acrescenta que, ao partirem, encontraram diante da porta o bispo Optato e um padre chamado Aspásio, que estavam sozinhos e tristes. Ambos se prostraram aos pés dos mártires e imploraram que os reconciliassem, pois havia surgido uma disputa. Quando Perpétua conversava com eles, “debaixo de uma roseira”, os anjos ordenaram que os dois clérigos se reconciliassem e disseram a Optato que acabasse com as festas em sua igreja. Sáturo acrescenta: “Depois começamos a reconhecer muitos mártires e este pedido indescritível e delicioso nos deu forças. Acordei com a alma cheia de alegria.”
Uma testemunha ocular provavelmente completou a ata. Felicidade temia ser privada do martírio, porque as mulheres grávidas geralmente não eram condenadas à pena capital. Todos os mártires rezaram por ela assim que deu à luz uma filha na prisão; um dos cristãos adotou a menina.
O prefeito da prisão, temendo que os cativos usassem algum feitiço mágico para escapar, tratou-os com grosseria e proibiu todas as visitas; mas, Perpétua conversou com ele e como resultado dessa conversa passou a tratar melhor os presos e permitiu que recebessem visitas de alguns de seus amigos.
Por outro lado, o carcereiro Pudente, “que chegou à fé”, fez tudo o que pôde pelos mártires. Na véspera do martírio, foi-lhes oferecida, segundo o costume, uma refeição pública denominada “festa gratuita”; os presos se esforçaram para transformá-lo em ágape ou “festa do amor” e falaram a todos sobre o julgamento de Deus e a alegria com que foram ao martírio. A sua coragem surpreendeu os pagãos e produziu numerosas conversões.
No dia do martírio, os presos saíram da prisão como se fossem para o céu. Os homens foram na frente; atrás deles estava Perpétua, “cujos olhos brilhavam de tal maneira que baixavam o olhar dos transeuntes”, junto com Felicidade, “que se sentiu muito feliz quando passou das mãos da parteira para as do carrasco para receber, depois de suas dores, a purificação de um segundo martírio”. Às portas do anfiteatro, os guardas tentaram fazer com que os homens vestissem as túnicas dos sacerdotes de Saturno e as mulheres com o traje consagrado a Ceres; mas, Perpétua resistiu tão vigorosamente que os guardas acabaram permitindo que elas entrassem na arena com suas próprias vestimentas.
A multidão, furiosa ao ver a bravura dos mártires, gritou para que fossem açoitados; assim, cada um deles recebeu uma chicotada ao passar na frente dos gladiadores. Saturnino pediu que diferentes bestas fossem lançadas sobre ele para que sua coroa fosse mais gloriosa; de acordo com seu desejo, ele e Revocato tiveram que enfrentar primeiro um leopardo e depois um urso.
Por sua vez, Sáturo, que tinha muito medo de ursos, gostaria que um leopardo acabasse com ele rapidamente. Atiraram nele um javali, que se virou contra o domador e o mordeu, fazendo com que ele morresse poucos dias depois, porém, Sáturo só foi arrastado pela areia. Então os guardas amarraram o mártir e o colocaram diante de um urso; mas não quis sair da jaula e o martírio de Sáturo teve que ser deixado para depois. Isto lhe proporcionou a oportunidade de falar com Pudente, o carcereiro, que havia se convertido.
Sáturo o encorajou, dizendo: “Vês que, como eu havia desejado e previsto, nenhuma fera se atreveu a me tocar. Acredite firmemente. Veja: da próxima vez eles vão me jogar para um leopardo que vai acabar comigo com uma única mordida.” Aconteceu assim; um leopardo saltou sobre ele e o deixou coberto de sangue num instante. A multidão uivou e gritou: “Agora ele está bem batizado!”
O mártir, já moribundo, disse a Pudente: “Adeus! Guarda a fé, lembra-te de mim, e que isto sirva para te confirmar e não para te confundir”. E, pegando o anel do carcereiro, molhou-o no próprio sangue, devolveu-o a Pudente e morreu. Então ele foi esperar por Perpétua, como ela havia previsto.
Perpétua e Felicidade foram atiradas a uma vaca selvagem. A fera atacou primeiro Perpétua, que caiu de costas; mas a mártir sentou-se imediatamente, cobriu-se com a túnica rasgada e arrumou um pouco os cabelos para que a multidão não acreditasse que ela estava com medo. Depois foi se juntar a Felicidade, que também estava caída no chão. Juntas, elas esperaram pelo próximo ataque da fera; mas a multidão gritou que isso bastava; os guardas as fizeram sair pela Porta Sanavivaria, por onde partiram os gladiadores vitoriosos. Ao passarem, Perpétua voltou a si de uma espécie de êxtase e perguntou se em breve enfrentaria as feras. Quando lhe contaram o ocorrido, a santa não acreditou, até ver os sinais da luta em seu corpo e em suas roupas.
Depois chamou seu irmão e o catecúmeno Rústico e disse-lhes: “Permaneçam firmes na fé e mantenham a caridade entre vós; não deixem que os sofrimentos se tornem uma pedra de escândalo”. Enquanto isso, a multidão inconstante pedia que as mártires aparecessem novamente; isto foi feito, para grande alegria das duas santas. Após dar o beijo da paz, Felicidade foi decapitada pelos gladiadores. O carrasco de Perpétua, muito nervoso, errou o primeiro golpe, fazendo a mártir gritar; ela mesma estendeu o pescoço para o segundo golpe. “Talvez porque uma mulher tão grande… só pudesse morrer voluntariamente.”
Em 1907, o Padre Delattre descobriu e restaurou uma antiga inscrição na Basílica Majorum de Cartago. Os corpos dos mártires foram sepultados nesta basílica, como afirmou expressamente Victor Vitense, bispo africano do século V que visitou o túmulo. O conteúdo da inscrição é o seguinte: “Aqui repousam os mártires Sáturo, Saturnino, Revocato, Secúndulo, Felicidade e Perpétua, que sofreram no início de março”. Contudo, não é possível afirmar com total certeza que esta inscrição seja precisamente a da lápide dos mártires.
O dia em que se comemora seu martírio é o dia de março (7 de março); mas a sua festa foi transferida para o dia 6 do mesmo mês para evitar que coincida com a de São Tomás de Aquino. Estes mártires aparecem em todos os calendários e martirológios antigos, como no calendário filocaliano de Roma (354 d.C.) e no calendário sírio, provavelmente elaborado em Antioquia, no final do século IV.
(BUTLER Alban de, Vida de los Santos: vol. I, ano 1965, pp. 471-477)
[1] “Porta sanavivaria”. Ver o penúltimo páragrafo deste artículo.
[2] Cf. Apocalipse 7, 17: “E Deus secará as lágrimas de seus olhos”.

