SANTO IRINEU (03/07)

SANTO IRINEU, Bispo e Mártir – 3ª classe
As obras literárias de Santo Irineu valeram-lhe a dignidade de figurar com destaque entre os Padres da Igreja, pois os seus escritos não só serviram para lançar os fundamentos da teologia cristã, mas também para expor e refutar os erros dos gnósticos e salvar assim os a fé católica do grave perigo que corria de ser contaminada e corrompida pelas doutrinas insidiosas daqueles hereges.
Nada se sabe sobre sua família. Nasceu provavelmente por volta do ano 125, numa daquelas províncias marítimas da Ásia Menor, onde a memória dos Apóstolos ainda era preservada com carinho entre os numerosos cristãos.
Sem dúvida recebeu uma educação muito cuidadosa e liberal, pois acrescentou ao seu profundo conhecimento das Sagradas Escrituras uma completa familiaridade com a literatura e a filosofia dos gregos. Ele também teve o privilégio inestimável de sentar-se entre alguns dos homens que conheceram os Apóstolos e seus primeiros discípulos, para ouvir suas palestras. Entre eles estava São Policarpo, que teve grande influência na vida de Irineu.
Aliás, a impressão que o santo bispo de Esmirna lhe causou foi tão profunda que, muitos anos depois, como confessou a um amigo, pôde descrever detalhadamente a aparência de São Policarpo, as inflexões de sua voz e cada uma das palavras que pronunciou para relatar suas entrevistas com São João, o Evangelista, e outros que conheciam o Senhor, ou para expor a doutrina que deles aprenderam. São Gregório de Tours afirma que foi São Policarpo quem enviou Irineu como missionário à Gália, mas não há provas que apoiem esta afirmação.
Desde tempos muito remotos existiram relações comerciais entre os portos da Ásia Menor e o de Marselha e, no século II da nossa era, os traficantes levantinos transportavam regularmente mercadorias rio acima, até à cidade de Lyon, que consequentemente, se tornou o principal mercado na Europa Ocidental e a cidade mais populosa da Gália.
Junto com os mercadores asiáticos, muitos dos quais se estabeleceram em Lyon, vieram os seus sacerdotes e missionários que levaram a palavra do Evangelho aos gauleses pagãos e fundaram uma vigorosa igreja local. Santo Irineu chegou àquela igreja para servir como sacerdote, sob a jurisdição de seu primeiro bispo, São Potino, também oriental, e ali permaneceu até sua morte.
A boa opinião que seus irmãos de religião tinham dele ficou evidente no ano de 177, quando foi enviado a Roma com uma missão muito delicada. Foi depois da eclosão da terrível perseguição a Marco Aurélio, à qual já nos referimos longamente neste volume, quando tratamos de São Potino, no dia 2 de junho, quando muitos dos líderes do cristianismo em Lyon já estavam prisioneiros.
O seu cativeiro, por outro lado, não os impediu de manter o seu interesse pelos fiéis cristãos da Ásia Menor. Conscientes da simpatia e da admiração que a sua situação de confessores em perigo iminente de morte suscitava entre a cristandade, enviaram ao Papa São Eleutério, através de Irineu, “a mais piedosa e ortodoxa das cartas”, com um apelo ao Pontífice – em nome da unidade e a paz da Igreja –, para que tratasse com delicadeza os irmãos montanheses da Frígia. Da mesma forma, recomendaram ao portador da carta um sacerdote “animado por um zelo ardente de testemunhar Cristo” e um amante da paz, como o seu nome indicava.
O cumprimento daquela missão que o afastou de Lyon explica porque Irineu não foi chamado a partilhar o martírio de São Potino e dos seus companheiros e nem sequer o testemunhou. Não sabemos quanto tempo permaneceu em Roma, mas assim que regressou a Lyon ocupou a sé episcopal que São Potino havia deixado vaga. A essa altura a perseguição havia terminado e os vinte ou mais anos de seu episcopado foram de relativa paz. As informações sobre suas atividades são escassas, mas é evidente que, além de suas atribuições puramente pastorais, trabalhou intensamente na evangelização de sua região e adjacentes.
Aparentemente, foi ele quem enviou os Santos Félix, Fortunato e Aquileo, como missionários para Valença, e os Santos Ferrucio e Ferreolo, para Besançon. Para indicar até que ponto se identificava com o seu rebanho, basta dizer que falava fluentemente céltico em vez de grego, que era a sua língua materna. A difusão do gnosticismo na Gália e os danos que causou nas fileiras do cristianismo inspiraram ao bispo Irineu o desejo de expor os erros daquela doutrina para combatê-la.
Ele começou estudando seus dogmas, o que por si só era uma tarefa muito difícil, já que cada um dos gnósticos parecia inclinado a introduzir novas versões próprias na doutrina. Felizmente, Santo Irineu foi “um investigador minucioso e incansável em todos os campos do conhecimento”, como nos conta Tertuliano, e, consequentemente, superou aquele obstáculo sem grandes contratempos e até com certo prazer.
Uma vez imerso nas ideias do “inimigo”, começou a escrever um tratado em cinco livros, na primeira parte do qual expôs completamente as doutrinas internas das diversas seitas para depois contradizê-las com os ensinamentos dos Apóstolos e os textos das Sagradas Escrituras.
Há um bom exemplo do método de combate que seguiu, na parte em que trata da questão doutrinária dos gnósticos de que o mundo visível foi criado, preservado e governado por seres angélicos e não por Deus, que permanecerá eternamente desapegado do mundo superior, indiferente e sem qualquer participação nas atividades do Pleroma (o mundo espiritual invisível). Irineu expõe a teoria, desenvolve-a até à sua conclusão lógica e, através de uma eficaz reductio ad absurdum, passa a demonstrar a sua falsidade.
Irineu expressa a verdadeira doutrina cristã sobre a estreita relação entre Deus e o mundo que Ele criou, nos seguintes termos: “O Pai está acima de tudo e é a cabeça de Cristo; mas por meio do Verbo todas as coisas foram feitas e Ele mesmo é a cabeça da Igreja, enquanto o Seu Espírito está em todos nós, Ele é aquela água viva que o Senhor dá a quem crê Nele e O ama porque sabe que existe um Pai acima de todas as coisas, através de todas as coisas e em todas as coisas.”
Irineu está mais preocupado em converter do que em confundir e, portanto, escreve com moderação e cortesia estudadas, mas de vez em quando escapam comentários humorísticos. Referindo-se, por exemplo, à atitude dos recém-iniciados, diz: “Assim que um homem se deixa envolver pelos seus ‘caminhos de salvação’, dá-se tanta importância e enche-se de vaidade a tal ponto que já não se imagina está no céu ou na terra, mas que passou pelas regiões do Pleroma e, com o porte majestoso de um galo, se pavoneia diante de nós, como se acabasse de abraçar a seu anjo.”
Irineu estava firmemente convencido de que grande parte do apelo do gnosticismo residia no véu de mistério com o qual gostava de se cercar e, de fato, havia decidido “desmascarar a raposa”, como ele mesmo dizia, e conseguiu: suas obras, escritas em grego, mas traduzidas para o latim quase imediatamente, circularam amplamente e logo desferiram o golpe mortal nos gnósticos do século II. Pelo menos, a partir de então, deixaram de constituir uma grave ameaça à Igreja Católica e à fé.
Treze ou quatorze anos depois de ter viajado a Roma com a carta ao Papa Eleutério, Irineu foi novamente o mediador entre um grupo de cristãos da Ásia Menor e o Pontífice. Visto que os quartodecimanos se recusaram a celebrar a Páscoa segundo o costume ocidental, o Papa Vítor III excomungou-os e, consequentemente, havia o perigo de um cisma.
Irineu interveio em seu nome. Numa carta lindamente escrita que dirigiu ao Papa, implorou-lhe que suspendesse a pena e salientou que os seus fiéis não eram realmente culpados, mas sim apegados a um costume tradicional e que uma diferença de opinião sobre o mesmo ponto não tinha impedido que o Papa Aniceto e São Policarpo permanecessem em comunhão.
O resultado da sua embaixada foi o restabelecimento de boas relações entre as duas partes e uma paz que não foi quebrada. Após o Concílio de Nicéia, em 325, os quartodecimanos aderiram voluntariamente ao uso romano, sem qualquer pressão da Santa Sé.
A data da morte de Santo Irineu é desconhecida, embora regra geral seja fixada no ano 202. Segundo uma tradição posterior, afirma-se que foi martirizado, mas não é provável nem há provas sobre a matéria.
O tratado contra os gnósticos chegou até nós completo em sua versão latina e, posteriormente, foi descoberta a existência de outro de seus escritos: a exposição da pregação apostólica, traduzida para o armênio. Embora o resto de suas obras tenha desaparecido, as duas obras mencionadas são suficientes para fornecer todos os elementos de um sistema completo de teologia cristã.
Os restos mortais de Santo Irineu, conforme indicado por Gregório de Tours, foram sepultados numa cripta, sob o altar da então chamada igreja de São João, mas que posteriormente tomou o nome de Santo Irineu. Este túmulo ou santuário foi destruído pelos calvinistas em 1562 e, aparentemente, até os últimos vestígios das suas relíquias desapareceram.
É importante notar que, embora a festa de Santo Irineu seja celebrada desde a antiguidade no Oriente (23 de agosto), ela só é celebrada na Igreja Ocidental desde 1922.
(BUTLER Alban de, Vida de los Santos: vol. III, ano 1965, pp. 9-12)

