INVENÇÃO DA SANTA CRUZ (03/05)

INVENÇÃO DA SANTA CRUZ
A festa do “Inventio”, isto é, a descoberta da Santa Cruz, que hoje se celebra com um duplo rito de segunda classe, poderia parecer mais importante que a festa do “Exaltação”, que se celebra em setembro com duplo rito simplesmente. No entanto, há muitas evidências de que a festa do mês de setembro é mais antiga e de que houve muita confusão sobre os dois incidentes da história da Santa Cruz, que deram origem às respetivas celebrações.
Para dizer a verdade, nenhuma das duas festas estava originalmente relacionada com a descoberta da Cruz. A de setembro comemorou a dedicação solene, ocorrida no ano de 335, das igrejas que Santa Helena induziu Constantino a construir no local do Santo Sepulcro. Além disso, não podemos garantir que a dedicação tenha ocorrido precisamente no dia 14 de setembro.
É verdade que o acontecimento ocorreu em setembro; mas, como cinquenta anos depois, no tempo da peregrina Etéria, a comemoração anual durava uma semana, não há razão para preferir um determinado dia a outro. Etéria diz o seguinte: “Assim, a dedicação daquelas santas igrejas é celebrada com muita solenidade, sobretudo porque a Cruz do Senhor foi descoberta no mesmo dia. Por isso precisamente as sobreditas igrejas foram consagradas no dia do encontro da Santa Cruz para que a celebração de ambos os eventos ocorresse na mesma data.” Disto parece deduzir-se que a descoberta da Cruz foi celebrada em Jerusalém em setembro; na verdade, um peregrino chamado Teodósio afirmou isto no ano 530.
Mas atualmente, dia 14 de setembro, a Igreja celebra um acontecimento muito diferente, a saber: a façanha do imperador Heráclio, que, no ano de 629, recuperou as relíquias da Cruz que o rei Chosroes II, da Pérsia, havia levado de Jerusalém alguns anos antes. O Martirológio Romano e as lições do Breviário dizem isso claramente. No entanto, há razões para pensar que o título “Exaltação da Cruz” se refere ao ato físico de levantar a relíquia sagrada para apresentá-la à veneração do povo e também é provável que a festa tenha sido chamada assim desde um tempo antes do de Heráclio.
Quanto aos fatos reais da descoberta da Cruz, que aqui interessam, devemos confessar que nos faltam notícias da época. O “Peregrino de Burdeos” não fala da Cruz do ano 333. O historiador Eusébio, contemporâneo dos acontecimentos, de quem poderíamos esperar detalhes abundantes, não menciona a descoberta, embora pareça não ignorar que havia três santuários no local do Santo Sepulcro. Assim, quando afirma que Constantino “adornava um santuário consagrado ao emblema da salvação”, podemos supor que se refere à capela do “Gólgota”, onde, segundo Etéria, foram preservadas as relíquias da Cruz. São Cirilo, bispo de Jerusalém, nas instruções catequéticas que deu no ano 346, no local onde o Salvador foi crucificado, menciona várias vezes o lenho da Cruz, “que foi cortado em minúsculos fragmentos, neste local, que foram distribuídos por todo o mundo.”
Além disso, na sua carta a Constâncio, ele afirma expressamente que “o lenho salvador da Cruz foi descoberto em Jerusalém, no tempo de Constantino”. Nenhum desses documentos menciona Santa Helena, falecida no ano 330. Talvez o primeiro a relacionar a santa com a descoberta da Cruz seja Santo Ambrósio, no sermão “De Obitu Theodosii”, que pregou no ano 395; mas, por volta da mesma época e um pouco mais tarde, já encontramos numerosas testemunhas, como São João Crisóstomo, Rufino, Paulino de Nola, Cassiodoro e os historiadores da Igreja, Sócrates, Sozomeno e Teodoreto.
São Jerônimo, que viveu em Jerusalém, fez eco à tradição, relacionando Santa Helena com a descoberta da Cruz. Infelizmente, as testemunhas discordam sobre os detalhes. Santo Ambrósio e São João Crisóstomo informam-nos que as escavações começaram por iniciativa de Santa Helena e resultaram na descoberta de três cruzes; os mesmos autores acrescentam que a Cruz do Senhor, que estava entre as outras duas, foi identificada graças ao sinal que nela estava. Por outro lado, Rufino, que Sócrates segue, diz que Santa Helena ordenou que fossem feitas escavações num local determinado por inspiração divina e que ali foram encontradas três cruzes e uma inscrição. Como era impossível saber a qual das cruzes pertencia a inscrição, Macário, bispo de Jerusalém, ordenou que uma mulher moribunda fosse trazida ao local da descoberta. A mulher tocou nas três cruzes e foi curada ao tocar na terceira, com a qual se identificou a Cruz do Salvador.
Em outros documentos da mesma época aparecem diferentes versões sobre a cura da mulher, a descoberta da Cruz e a disposição dos pregos, etc. Globalmente, fica a impressão de que aqueles autores, que escreveram mais de sessenta anos depois dos acontecimentos e se preocuparam, sobretudo, com detalhes edificantes, foram influenciados por certos documentos apócrifos que, sem dúvida, já circulavam. O mais notável desses documentos é o tratado “De inventione crucis dominicae”, do qual o decreto pseudogelasiano (c. 550) diz que se deveria desconfiar.
Não há dúvida de que este pequeno tratado alcançou grande divulgação. O autor do primeiro rascunho do Liber Pontificalis (c. 532) deve tê-lo tratado, pois o cita ao falar do Papa Eusébio. Os revisores do Hieronymianum, em Auxerre, no século VII[1] também o devem ter conhecido.
Além dos numerosos anacronismos do tratado, a essência é esta: o imperador Constantino corria grave perigo de ser derrotado pelas hordas de bárbaros do Danúbio. Então, ele presenciou o aparecimento de uma cruz muito brilhante, com uma inscrição que dizia: “Com este sinal vencerás”. A vitória o favoreceu, de fato. Constantino, após ser instruído e batizado pelo Papa Eusébio em Roma, movido pela gratidão, enviou sua mãe Santa Helena a Jerusalém em busca das relíquias da Cruz. Os habitantes não souberam responder às perguntas da santa; mas, finalmente, recorreu a ameaças e conseguiu que um sábio judeu, chamado Judas, lhe revelasse o que sabia.
As escavações muito profundas resultaram na descoberta de três cruzes. A verdadeira Cruz foi identificada porque ressuscitou um morto. Judas se converteu quando testemunhou o milagre. O bispo de Jerusalém morreu naquele momento, e Santa Helena escolheu o recém-convertido Judas, que passou a ser chamado de Ciríaco, para suceder ao bispo. O Papa Eusébio foi a Jerusalém para consagrá-lo e, pouco depois, uma luz muito forte indicou o local onde foram encontrados os pregos.
Santa Helena, depois de fazer generosas doações aos Lugares Santos e aos pobres de Jerusalém, deu seu último suspiro, mas não antes de ter encarregado os fiéis de celebrarem uma festa anual no dia 3 de maio (“quinta Nonas Maii”), dia da descoberta da Cruz. Parece que Sozomen (lib. II, c. i) já conhecia, antes do ano 450, a legenda do judeu que revelou o local onde a Cruz foi enterrada. O referido autor não classifica esta legenda como pura invenção, mas a descarta como improvável.
Outra legenda apócrifa, embora menos diretamente relacionada com a descoberta da Cruz, aparece como uma digressão, no documento sírio denominado “A Doutrina de Addai”. Lá se conta que, menos de dez anos depois da Ascensão do Senhor, Protônica, esposa do imperador Cláudio César, foi à Terra Santa, obrigou os judeus a confessarem onde haviam escondido as cruzes e reconheceu a do Salvador para o milagre que ele operou em sua própria filha. Alguns autores afirmam que a legenda da descoberta da Cruz por Santa Helena, no tempo de Constantino, se baseia nesta legenda. O Bispo Duchesne acreditava que “A Doutrina de Addai” era anterior ao De inventione crucis dominicae, mas existem argumentos muito fortes a favor da opinião oposta.
Dada a natureza insatisfatória dos documentos, a teoria mais provável é que a Santa Cruz com a inscrição tenha sido descoberta durante as escavações realizadas para a construção da Basílica Constantiniana do Calvário. A descoberta, que foi sem dúvida seguida de um período de hesitações e de investigação sobre a autenticidade da cruz, provavelmente deu origem a uma série de rumores e conjecturas, que ganharam corpo no tratado De inventione crucis dominicae. É possível que a participação de Santa Helena no evento se tenha reduzido simplesmente ao que diz Eteria: “Constantino, comovido pela mãe (“sub praesentia matris suae”), embelezou a igreja com ouro, mosaicos e mármores preciosos”. A vitória é sempre atribuída a um soberano, mesmo que sejam os generais e os soldados que vencem as batalhas.
A verdade é que, a partir de meados do século IV, as alegadas relíquias da Cruz espalharam-se pelo mundo, como afirma repetidamente São Cirilo e como o comprovam algumas inscrições datadas em África e noutras regiões. Ainda mais convincente é o fato de, no final do mesmo século, os peregrinos em Jerusalém venerarem o mastro principal da Cruz com intensa devoção.
Etéria, que presenciou a cerimônia, deixou uma descrição escrita da mesma. Na vida de São Porfírio de Gaza, escrita cerca de doze anos depois, temos outro testemunho da veneração que se professava à santa relíquia e, quase dois séculos depois, o peregrino conhecido pelo nome incorreto de Antonino de Piacenza, conta-nos : “adoramos e beijamos o lenho da Cruz e tocamos a inscrição”.
Por um Motu Proprio de João XXIII em 25 de julho de 1960, esta festa foi suprimida do Calendário Romano [Geral, mas concedida como privilégio para todo o Brasil].
[1] É curioso que o Bispo Duchesne tenha dito em Origines (“Adoração Cristã”, p. 275, n. 2; e cf. Liber Pontificalis, vol. i, p. 378, n. 29) que “no manuscrito de Epternach não se menciona a festa da cruz “. Ela se acha no dia 7 de maio, igual ao calendário de São Wilibrordo.
(BUTLER Alban de, Vida de los Santos: vol. II, ano 1965, pp. 204-207)

