História do Tempo da Paixão e da Semana Santa

História do Tempo da Paixão e da Semana Santa
Ano Litúrgico – Dom Próspero Gueranger
PREPARAÇÃO PARA A PÁSCOA – Depois de ter proposto o jejum de Jesus na montanha à meditação dos fiéis durante as primeiras quatro semanas da Quaresma, a Igreja consagra agora as duas semanas que ainda nos separam da festa da Páscoa à consideração das dores do Redentor. Ela não quer que seus filhos apareçam no dia da Imolação do divino Cordeiro sem terem preparado suas almas com a meditação das dores que Ele sofreu em nosso lugar. Os mais antigos monumentos da Liturgia, os Sacramentários e os Antifonários de todas as igrejas alertam-nos pelo tom das orações, pela seleção das leituras, pelo significado de todas as fórmulas sagradas que a Paixão de Cristo é, a partir de hoje, o único pensamento que deve dominar os cristãos. Até o Domingo de Ramos, as festas dos santos ainda podem ser celebradas durante a semana, mas nenhuma solenidade, de qualquer classe, pode ser celebrada no Domingo da Paixão.
Como dados históricos não temos nenhum na primeira semana desta quinzena; as suas observâncias são as mesmas das quatro semanas anteriores[1]. Remetemos, portanto, o leitor ao próximo capítulo, onde tratamos das particularidades místicas da época da Paixão em geral. Mas, pelo contrário, a segunda semana tem muitos detalhes históricos; pois nenhuma época do Ano Litúrgico preocupou tanto os cristãos, nem lhes proporcionou manifestações tão vivas de piedade.
NOMES DADOS NA ÚLTIMA SEMANA – Esta semana foi tida com grande veneração já no século III, como se pode verificar pelos testemunhos contemporâneos de São Dionísio de Alexandria[2]. A partir do século seguinte, vemos que foi chamada de Semana Maior, numa homilia de São João Crisóstomo: “De modo algum, diz o santo Doutor, porque tenha mais dias que as outras, nem porque os dias tenham maior número de horas, mas pela grandeza dos mistérios que nela se celebram”[3]. Também foi chamada de Semana Dolorosa, pelos sofrimentos de Cristo e pelo trabalho que a sua celebração exige; Semana do Perdão, porque nela os pecadores eram recebidos à penitência; finalmente a Semana Santa, pela santidade dos mistérios que nela se comemoram. Chamamos-lhe com este nome e é tão apropriado a esta Semana que por extensão cada um dos dias que a compõem também são chamados de Santos; e assim dizemos, Segunda-feira Santa, Terça-feira Santa, etc…
RIGOR DO JEJUM – A severidade do jejum quaresmal era anteriormente aumentada nestes últimos dias, que eram como o esforço supremo da penitência cristã. A Liturgia, tendo em conta a fragilidade das gerações do nosso tempo, foi suavizando gradualmente estes rigores e, hoje, no Ocidente, o rigor desta semana não difere das anteriores. Mas as Igrejas do Oriente, fiéis às tradições da antiguidade, continuam a observar uma abstinência rigorosa, que a partir do domingo da Quinquagésima, dá o nome de Xerophagia, a este longo período que só permite comer alimentos secos.
Quanto ao jejum, antigamente estendia-se além do que a força humana permitia. Vemos em Santo Epifânio[4] que havia cristãos que prolongavam o dia da Páscoa[5], da manhã de segunda-feira até ao canto do galo.
Sem dúvida, apenas um pequeno grupo de deles poderia fazer este esforço; os restantes contentavam-se em ficar sem comer durante dois, três, quatro dias consecutivos; mas o costume comum era não comer desde a tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do dia de Páscoa[6]. Exemplos deste rigor não são raros também nos nossos dias, entre os cristãos do Oriente e na Rússia; felizes se estas obras de tão intrépida penitência forem sempre acompanhadas de uma firme adesão à fé e à unidade da Igreja.
PRORROGAÇÃO DAS VIGÍLIAS – Prolongar as vigílias durante a noite na igreja também era uma das características da Semana Santa na antiguidade. Na Quinta-feira Santa, depois de terem celebrado os mistérios divinos em memória da Última Ceia do Senhor, o povo perseverou durante muito tempo na oração. A noite de sexta para sábado foi passada quase inteiramente em vigília, para homenagear o sepultamento de Cristo[7]; mas a mais longa de todas as vigílias era a do sábado, que durava até a manhã do dia de Páscoa. A cidade inteira participava; assistia à preparação final dos catecúmenos, presenciava a administração do batismo e a assembleia só se dispersava depois de ter celebrado o Santo Sacrifício, que terminava ao nascer do sol.
SUSPENSÃO DO TRABALHO – Durante toda a Semana Santa os fiéis interrompiam os trabalhos braçais; o direito civil apoiava o direito eclesiástico para garantir que o trabalho e o comércio fossem suspensos para expressar o luto do cristianismo de forma imponente. A ideia do sacrifício e morte de Cristo era o pensamento de todos; as relações ordinárias eram suspensas; os ofícios divinos e a oração absorviam toda a vida moral, enquanto o jejum e a abstinência reivindicavam toda a força corporal. É fácil compreender a impressão que esta interrupção solene de tudo o que diz respeito aos homens na sua vida deve ter produzido no resto do ano. Quando recordamos o rigor que observavam durante a Quaresma, durante cinco semanas completas, podemos adivinhar a alegria com que aguardavam as festividades pascais; comunicava ao mesmo tempo a regeneração da alma e o alívio do corpo.
SUSPENSÃO DOS TRIBUNAIS – Lembramos, no volume anterior, as disposições do Código de Teodósio que prescreviam a suspensão de todos os processos e diligências quarenta dias antes da Páscoa. A lei de Graciano e Teodósio sobre este assunto, dada em 380, foi ampliada por Teodósio em 389 e adaptada aos dias que celebramos por meio de um novo decreto que proibia até ações judiciais durante os sete dias anteriores à festa da Páscoa e os sete seguintes.
Nas Homilias de São João Crisóstomo e nos sermões de Santo Agostinho há muitas alusões referentes a esta nova lei; declarava que todos os dias desta quinzena gozariam doravante, em todas as cortes, do privilégio do domingo.
O PERDÃO DOS PRÍNCIPES – Mas os príncipes cristãos não se limitavam a suspender a justiça humana nestes dias de misericórdia, quiseram também honrar com sensibilidade a bondade paterna de Deus, que se dignou a perdoar o mundo pecador, através dos méritos do seu Filho sacrificado. A Igreja vai receber novamente os pecadores, depois de ter quebrado as cadeias do pecado das quais eram escravos. Os príncipes cristãos orgulhavam-se de imitar a sua Mãe; ordenavam que as masmorras fossem abertas e que os infelizes que gemiam sob o peso das sentenças proferidas pelos tribunais do país fossem libertados. Excetuavam-se apenas os criminosos, cujos crimes estavam gravemente relacionados com a família e a sociedade.
O grande nome de Teodósio é elogiado com entusiasmo por isso. São João Crisóstomo diz[8] que este imperador enviou indultos às cidades, ordenando a libertação dos prisioneiros e poupando a vida dos condenados à morte; para que assim santificassem os dias que antecediam a festa da Páscoa. Os imperadores posteriores transformaram esta disposição em lei; assim diz São Leão em um de seus sermões: “Os imperadores romanos há muito observam esta santa instituição, através da qual eram vistos, em honra da Paixão e Ressurreição do Senhor, a humilhar os emblemas do seu poder, a suavizar a severidade das suas leis e a perdoar um grande número de prisioneiros; com este perdão queriam mostrar-se imitadores da bondade divina nestes dias, quando Ele se dignou a salvar o mundo não devem ser mais rigorosas que as leis públicas. Portanto, as injustiças devem ser perdoadas, as cadeias quebradas, as ofensas perdoadas, os ressentimentos reprimidos, para que, tanto da parte de Deus como do homem, tudo contribua para restabelecer em nós a inocência de vida adequada à solenidade que esperamos.”[9]
Esta anistia cristã não está decretada apenas no Código de Teodósio; encontramos também vestígios nos monumentos de direito público dos nossos pais. Em algumas nações da Europa, Bélgica, França, Espanha, estas leis têm sido observadas desde os tempos antigos; os reis e imperadores ordenaram que as portas da prisão fossem abertas a um grande número de presos nos dias que antecederam a festa da Páscoa. Em Espanha, na cerimônia de adoração solene da Cruz, na Sexta-feira Santa, o Rei perdoava alguns presos condenados à morte. Costume louvável que se conservou até os últimos tempos da monarquia espanhola.
VERDADEIRA IGUALDADE E FRATERNIDADE – As revoluções que ocorreram sem interrupção durante mais de cem anos tiveram o resultado distinto da secularização das nações; isto é, apagaram dos nossos costumes públicos e da nossa legislação tudo o que tinham adquirido através da influência do espírito sobrenatural do Cristianismo. Foi proclamado aos quatro ventos que todos os homens são iguais. Teria sido inútil tentar convencer os povos cristãos desta verdade naqueles séculos de fé em que viram os seus príncipes, à medida que se aproximavam as grandes solenidades onde a justiça e a misericórdia divinas estavam tão vividamente representadas, abdicarem, por assim dizer, do seu cetro, aceitarem submissamente o castigo das suas faltas, e aproximarem-se do banquete pascal da fraternidade cristã, ao lado dos homens acorrentados por si mesmos em nome da sociedade, poucos dias antes. O pensamento de um Deus, a cujos olhos todos os homens são pecadores, de um Deus de quem só vêm a justiça e o perdão, oprimia as nações nestes dias; poder-se-ia datar verdadeiramente os dias da Semana Santa com aquelas palavras que contêm alguns diplomas destes tempos de fé: “Sob o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo – Regnante Domino Nostro Jesu Christo.”
Será que os súditos se recusariam a aceitar o jugo da submissão depois de terem deixado estes dias de santa igualdade cristã? Pensariam em aproveitar a oportunidade para elaborar as fórmulas dos Direitos do Homem? De forma alguma; o mesmo pensamento que havia humilhado os potentados da justiça legal diante da Cruz do Salvador, manifestou ao povo a obrigação de obedecer aos poderes estabelecidos por Deus, Deus foi o motivo que subjugou os homens sob o poder e aquele que concedeu o mesmo poder; as dinastias poderiam suceder-se umas às outras sem diminuir o respeito cordial pela autoridade. Hoje a Liturgia não pode ser imposta desta forma à sociedade; a religião é como um refúgio, como que em segredo, nas profundezas das almas fiéis, as instituições políticas nada mais são do que a expressão do orgulho humano que quer comandar e se recusa a obedecer.
E, no entanto, a sociedade do século IV que produziu estas leis misericordiosas que acabamos de enumerar como fruto espontâneo do espírito cristão, ainda era meio pagã! A nossa é fundada pelo Cristianismo; porque só ele poderia civilizar os bárbaros, e chamamos isso de progresso ao contrário, contra todas as garantias de ordem, paz e moralidade que a religião inspirou nos antigos legisladores! Quando renascerá a fé dos nossos pais, a única capaz de restituir as nações aos seus alicerces! Quando é que os sábios do mundo porão fim àquelas utopias humanas que não têm outra finalidade senão lisonjear as paixões fatais que Jesus Cristo tão veementemente condena nos mistérios que celebramos nestes dias?
ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO – Se o espírito de caridade e o desejo de imitar a misericórdia divina moveram os imperadores cristãos a dar liberdade aos seus prisioneiros, eles não podiam deixar de se interessar também pelo destino dos escravos, nestes dias em que Jesus Cristo se dignou resgatar-nos com o seu Sangue. A escravidão, filha do pecado e instituição fundamental do mundo antigo, foi mortalmente ferida pela pregação do Evangelho; mas estava reservado aos indivíduos estendê-lo pouco a pouco através da aplicação do princípio da fraternidade cristã.
Assim como Jesus Cristo e os apóstolos não exigiram a abolição imediata da escravatura; assim, os príncipes cristãos limitaram-se a favorecer esta abolição na sua legislação. Encontramos prova disso no Código de Justiniano, onde depois de proibir os processos judiciais durante a Semana Santa e a Páscoa, acrescenta esta disposição: “No entanto, é permitido conceder liberdade aos escravos; e qualquer dos atos necessários à sua libertação não será considerado contrário à lei.”[10] De resto, Justiniano, por esta disposição caridosa, aplicava apenas à quinzena pascal a lei misericordiosa que Constantino publicara no dia seguinte ao triunfo da Igreja; lei pela qual todos os processos aos domingos eram proibidos, exceto aqueles cujo objetivo era a liberdade dos escravos.
Muito antes de Constantino, a Igreja já pensava nos escravos nestes dias em que se celebram os mistérios da redenção do mundo. Os seus Patronos cristãos deviam deixá-los gozar de completo descanso durante esta sagrada quinzena. Tal é o direito canônico formulado nas Constituições Apostólicas cuja compilação remonta a antes do século IV: “Durante a Semana Santa que antecedeu o dia da Páscoa”, diz-se ali, “e durante as seguintes, os escravos devem descansar, porque a primeira é a semana da Paixão do Senhor, e a outra, a da Ressurreição, e os servos precisam ser instruídos nestes mistérios”.[11]
OBRAS DE CARIDADE – Em suma, a última manifestação do caráter espiritual dos dias em que vamos entrar é a esmola e as obras de misericórdia, nas quais devemos exercitar-nos mais do que nunca. São João Crisóstomo diz-nos que, com o tempo, isso foi feito, e nota, com louvor, que os fiéis redobraram a sua generosidade para com os pobres, a fim de se assemelharem de alguma forma à munificência divina que estenderá, sem medida, os seus benefícios ao pecador.
[1] Não pretendemos aqui julgar as discussões puramente arqueológicas que surgiram sobre o nome Mediana com que era designado o Domingo da Paixão nos antigos monumentos da Liturgia e do Direito Eclesiástico.
[2] Carta a Basílio, c. I.
[3] Homilia 30 sobre o Gêneses.
[4] Exposição da fé, IX: Heres., XXII.
[5] Em meados do século III, em Alexandria, eles jejuavam a semana inteira, de uma só vez ou em intervalos (Carta de S. Dionísio a Basílio, P. G. X, C. 1277).
[6] Este costume é muito antigo, pois dele fala Santo Irineu (por volta do ano 200) e também Eusébio na sua História Eclesiástica. CV, 24, P. G. XX, C. 501.
[7] São João Crisóstomo, Homilia 30 sobre o Gêneses.
[8] Sexta Homilia ao povo de Antioquia.
[9] Sermão 400, sobre a Quaresma.
[10] Cód. I, III, tit. XII, de feriis, Leg. 8.
[11] Constituições Apostólicas, I, VIII, c. XXXIII.

