HISTÓRIA DA QUARESMA

HISTÓRIA DA QUARESMA
Ano Litúrgico – Dom Próspero Gueranger
O nome Quaresma é dado ao período de oração e penitência durante o qual a Igreja prepara as almas para celebrar o mistério da Redenção.
A ORAÇÃO – Aos fiéis, mesmo aos melhores, a nossa Mãe Igreja propõe este tempo litúrgico como um retiro anual que lhes proporcionará uma ocasião oportuna para reparar todas as negligências de outros tempos e acender a chama do seu zelo. Oferece aos catecúmenos, como nos primeiros séculos, um ensinamento, uma preparação para a iluminação batismal. Aos penitentes, ele chama a atenção para a gravidade do pecado, e inclina seus corações ao arrependimento e às boas resoluções, e lhes promete o perdão do Coração de Deus.
São Bento recomenda aos seus monges, no capítulo XLIX da sua Regra, que dediquem este tempo santo à oração acompanhada de lágrimas de arrependimento ou de terno fervor. Todos os fiéis, de qualquer estado e condição, encontrarão nas Missas de cada dia da Quaresma as mais admiráveis fórmulas de oração com as quais poderão dirigir-se a Deus. Com quinze ou mais séculos de existência, adaptam-se às aspirações e necessidades de cada um.
A PENITÊNCIA – A penitência é praticada, ou melhor, era praticada com a observância do jejum. As dispensas temporárias concedidas durante alguns anos pelo Sumo Pontífice não serão pretexto para silenciar uma prática tão importante a que aludem constantemente as orações das Missas Quaresmais e à qual todos devem, pelo menos, preservar o espírito, se a dureza dos tempos ou a saúde debilitada não permitirem que seja plena e rigorosamente observada.
A prática do jejum remonta aos primeiros séculos do Cristianismo e é até anterior a ele. Depois dos profetas Moisés e Elias, cujo exemplo nos será proposto na quarta-feira da primeira semana, o Senhor o praticou permanecendo sem comer durante quarenta dias e quarenta noites, e se não quis estabelecer um mandamento divino, que nesse caso não seria suscetível de discussão, pelo menos declarou que o jejum tão frequentemente prescrito por Deus na antiga lei, também seria praticado pelos filhos da nova.
Um dia, os discípulos de João aproximaram-se de Jesus e disseram-lhe: “Por que, visto que nós e os fariseus jejuamos frequentemente, os teus discípulos não jejuam?” Jesus Cristo respondeu-lhes: “Poderão os companheiros do Noivo ficar tristes enquanto o Noivo está com eles? Mas chegarão dias em que o Noivo lhes será tirado e então jejuarão”.[1]
Os cristãos lembraram-se desta frase e logo passaram os três dias – que para eles era um só – em jejum absoluto, mistério da Redenção, ou seja, desde a Quinta-feira Santa até à manhã de Páscoa.
Temos evidências confiáveis dos séculos II e III de que muitas igrejas jejuavam na Sexta-feira Santa e no Sábado Santo, e Santo Irineu, em sua carta ao Papa São Vítor, afirma que várias igrejas orientais fizeram o mesmo durante a Semana Santa. No século IV, este jejum pascal e a preparação para a festa da Páscoa foram estendidos durante um período de ascetismo de quarenta dias – quadragésimo – Quaresma.
A primeira menção que encontramos no Oriente da “quarentena” encontra-se no cânon 5 do Concílio de Nicéia (325). O bispo de Thmuis, Serapião, afirma em 331 que a “Quaresma” é na época uma prática universal no Oriente e no Ocidente. Os Padres, como, por exemplo, Santo Agostinho (Sermão CCX), dizem que é uma prática muito antiga, e São Leão (Sermão VI) pensa, embora erroneamente, que remonta aos tempos apostólicos. Estes mesmos Padres, e com eles Santo Ambrósio e São Jerônimo, são os primeiros a falar-nos do jejum.
Os sermões de Santo Agostinho atestam que a Quaresma começava no 6º domingo antes da Páscoa. Como não havia jejum no domingo, existiam apenas trinta e quatro dias de jejum, trinta e seis com a Sexta-feira Santa e o Sábado; porém, a Quaresma ainda era uma “quarentena” de preparação para a Páscoa. O jejum, de fato, não era, e não é hoje, a única forma de preparação para celebrar a Páscoa. Santo Agostinho insiste que o jejum seja acompanhado do fervor da oração, da humildade, da renúncia absoluta aos maus desejos, de muitas esmolas, do perdão das ofensas e da prática de todas as obras de piedade e de caridade.
Vemos a mesma extensão do período quaresmal na Espanha do século VII e na Gália e em Milão. A grande solenidade do mundo é para Santo Ambrósio na Sexta-feira Santa, e a festa da Páscoa contém o tríduo da morte, sepultura e ressurreição de Cristo (Carta XXIII). Se o jejum era quebrado aos domingos, mantinham, no entanto, graças à Liturgia, o seu tom penitencial.
Para São Leão é também um período de quarenta dias que termina na quinta-feira santa à tarde; e se, segundo Santo Agostinho, insiste em pesar as vantagens do jejum corporal, recomenda com mais insistência os outros exercícios de mortificação e penitência, de arrependimento, sobretudo, do pecado, e da prática mais fervorosa de boas obras e virtudes.
NECESSIDADE DE PENITÊNCIA – Não obstante, visto que nos nossos tempos a mortificação corporal está caindo em desuso, não consideremos inútil demonstrar aos cristãos a importância e a utilidade do jejum; as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento defendem esta prática sagrada. Podemos afirmar também que a tradição de todos os povos o corrobora, porque a ideia de que o homem pode apaziguar a divindade submetendo o seu corpo à expiação tomou conta do mundo, pois está presente em todas as religiões, mesmo naquelas mais distantes da pureza das tradições patriarcais.
PRECEITO DA ABSTINÊNCIA – São Basílio, São João Crisóstomo, São Jerônimo e São Gregório Magno declararam que o preceito a que foram submetidos os nossos primeiros pais, no paraíso terrestre, era um preceito de abstinência e que, ao quebrarem esta virtude, mergulharam a si mesmos e a todos os seus descendentes num abismo de calamidades. A vida de privações a que o caído rei da criação foi posteriormente submetido, na terra que já não deveria produzir para ele nada além de espinheiros e espinhos, mostrou claramente a lei da expiação que o Criador impôs com justiça aos membros rebeldes do homem pecador.
Até ao dilúvio, os nossos avós preservaram a sua existência com a ajuda exclusiva dos frutos da terra que colhiam à força do trabalho. Deus então se dignou permitir que eles se alimentassem de carne de animais para compensar o declínio das forças naturais. Então Noé, movido pelo instinto divino, tirou o suco da vinha e um novo relevo foi acrescentado à força do homem.
ABSTINÊNCIA DE CARNE E VINHO – A natureza do jejum baseou-se nos vários elementos que servem de apoio às forças humanas e, num primeiro momento, deve ter consistido na abstinência de carne animal, porque essa ajuda, oferecida pela condescendência divina, é menos rigorosamente necessária à vida. Durante muitos séculos, como vemos hoje nas igrejas do Oriente, os ovos e os produtos lácteos foram proibidos porque provinham de substâncias animais; e também no século XIX não eram permitidos nas igrejas latinas, exceto em virtude de uma dispensa anual mais ou menos geral. Tal era ainda o rigor da abstinência de carne, que o domingo da Quaresma não era suspenso apesar da interrupção do jejum, e aqueles que tivessem conseguido a dispensa dos jejuns semanais estavam sujeitos a esta abstinência, se não fossem isentos dela por outra dispensa especial.
Nos primeiros séculos do Cristianismo, o jejum envolvia a abstinência de vinho; São Cirilo de Jerusalém[2], São Basílio[3], São João Crisóstomo[4], Teófilo de Alexandria, etc., alertam-nos sobre isso. Este rigor logo desapareceu entre os ocidentais, mas foi preservado por mais tempo entre os orientais.
ÚNICA REFEIÇÃO – Por fim, para ser completo, o jejum deve estender-se, até certo ponto, à privação da alimentação normal: no sentido de que não tolera mais do que uma única refeição por dia. Tal é a ideia que devemos formar e que resulta de toda a prática da Igreja, apesar das muitas mudanças que foram feitas, de século em século, na disciplina da Quaresma.
REFEIÇÃO DEPOIS DE VÉSPERAS – O costume judaico no Antigo Testamento era adiar até o pôr do sol a única refeição permitida nos dias de jejum. Este costume foi transmitido à Igreja Cristã e foi estabelecido até nas nossas regiões ocidentais, onde foi inviolavelmente observado durante muito tempo. Finalmente, desde o século IX, uma mitigação filtrou-se gradualmente na Igreja latina; e nesta altura encontramos uma Capitular de Teodulfo, Bispo de Orleans em que este prelado protesta contra aqueles que se julgavam já autorizados a fazer a refeição à hora nona, ou seja: às três da tarde; contudo, esse relaxamento se espalhou insensivelmente; pois bem, no século seguinte encontramos o testemunho do famoso Rathiero. Bispo de Verona, que num sermão sobre a Quaresma, reconhece nos fiéis a liberdade de comer em qualquer horário. Encontramos, no entanto, indicações de reivindicações contra ela no século XI, num Concílio de Rouen, que proíbe os fiéis de comerem antes das Vésperas na Igreja depois de Nona; mas já se pode adivinhar aqui a tendência de antecipar as Vésperas para dar aos fiéis uma razão plausível para comerem a refeição mais cedo.
Até essa data, de fato, havia o costume de não celebrar Missa nos dias de jejum antes de ter cantado o Ofício de Nona, que começava por volta das três da tarde, e de não cantar Vésperas até ao pôr-do-sol. E à medida que a disciplina do jejum foi gradualmente suavizando, a Igreja não considerou, no entanto, apropriado perturbar a ordem dos seus Ofícios que remontava à mais remota antiguidade; mas ela antecipou sucessivamente, primeiro as Vésperas, depois a Missa e, finalmente, Nona, de modo que as Vésperas terminassem antes do meio-dia, quando o costume finalmente autorizava os fiéis a comer ao meio-dia.
REFEIÇÃO DEPOIS DE NONA – Encontramos no século XII uma nota de Hugo de São Vítor, que atesta que o costume de quebrar o jejum na hora de Nona já era geral[5]; e esta prática foi defendida, no século XIII, pelo ensino dos doutores eclesiásticos. Alexandre de Halés autoriza-o formalmente na Suma que compôs[6], e Santo Tomás de Aquino não é menos explícito[7].
REFEIÇÃO AO MEIO-DIA – A mitigação ainda tinha de progredir; e assim vemos que no final do século XIII, o Dr. Richard de Middleton, um famoso franciscano, ensinou que aqueles que comem na sexta hora, ou seja, ao meio-dia, não devem ser julgados como transgressores do jejum, porque, diz ele, esse costume já prevalece em vários lugares, e o horário em que se come não é tão necessário à essência do jejum como o fato de ser uma única refeição.[8]
O século XIV consagrou na prática e pelo ensino formal a opinião de Ricardo de Middleton. Para confirmar o que foi dito, levamos em conta o testemunho do famoso Dr. Durando de Saint-Pourgain, dominicano e bispo de Meaux. Não há problema em indicar o horário do meio-dia para a alimentação nos dias de jejum; tal é, diz ele, a prática do Papa, dos Cardeais e até dos religiosos[9]. Não é de surpreender, então, que este ensinamento tenha sido apoiado no século XV pelos autores mais sérios, como Santo Antonino, Estêvão Poncher, Bispo de Paris, Cardeal Caetano, etc. Em vão Alejandro de Halés e Santo Tomás tentaram impedir o declínio do jejum fixando a refeição no horário de Nona; muito em breve esta lei foi aprovada, e pode-se dizer que a disciplina atual foi estabelecida desde então.
A COLAÇÃO – Agora, com o avanço da hora das refeições, o jejum, que consistia essencialmente em não fazer mais do que aquela única refeição, tornou-se difícil na prática, devido ao longo intervalo entre um meio-dia e outro. Era preciso apoiar a fraqueza humana autorizando o que se chamava: Colação. A origem deste uso é muito antiga e provém dos usos monásticos. A Regra de São Bento prescrevia, fora da Quaresma eclesiástica, um grande número de jejuns, mas atenuava o rigor, permitindo a alimentação à hora de Nona; desta forma, o jejum era menos penoso que o da Quaresma, ao qual todos os fiéis seculares e religiosos estavam obrigados até o pôr do sol. E como os monges tinham que realizar os trabalhos mais árduos nos campos no verão e no outono, época em que os jejuns até Nona eram muito frequentes e até diários, a partir de 14 de setembro, os abades, usando o poder autorizado pela própria Santa Regra, concederam aos religiosos a liberdade de beber um copo de vinho à tarde antes das Completas para recuperar as forças exauridas pelo trabalho do dia. Esse relevo era tomado em comum, e no horário da leitura da tarde, denominada Conferência, em latim: Collatio, porque consistia principalmente na leitura das famosas palestras – Callationes – , de Cassiano; e daí veio o nome Colação dado a esse alívio do jejum monástico.
No século IX vemos que a Assembleia de Aquisgrán do ano 817[10] estendeu esta liberdade aos jejuns da Quaresma, tendo em conta o grande cansaço que os monges experimentavam nos Ofícios divinos deste tempo sagrado. Notou-se, porém, posteriormente que o uso desta bebida poderia causar alguns problemas de saúde se não fosse adicionado algo sólido. E já nos séculos XIV e XV foi introduzido o costume de dar aos religiosos um pedacinho de pão que comiam ao beber o copo de vinho que lhes era oferecido, na Colação.
Estas atenuações ao jejum primitivo introduzidas nos claustros pareceram naturalmente estender-se em breve aos leigos. Aos poucos foi-se estabelecendo a liberdade de beber fora da única refeição; e no século XIII, São Tomás examinou a questão de saber se beber quebra o jejum; ele decide pelo negativo[11]; porém, ainda não admite que alimentos sólidos possam ser adicionados a esta bebida. Mas quando, a partir de finais do século XIII e durante o século XIV, a refeição foi definitivamente antecipada para o meio-dia, uma simples bebida à tarde não bastava para sustentar as forças do corpo; e depois foi introduzido nos mosteiros e no mundo o uso de pão, legumes, frutas, etc., além da bebida, com a condição de fazê-lo discretamente para que a Colação não se tornasse uma segunda refeição.
ABSTINÊNCIA DE LACTICÍNIOS – Estas foram as conquistas que o relaxamento do fervor e também a fraqueza geral das forças nos povos ocidentais alcançaram a partir da antiga observância do jejum. No entanto, estes assaltos não são as únicas que temos de verificar. Durante muitos séculos, a abstinência de carne carregou consigo tudo o que vinha do reino animal, fora da pesca, por diversos motivos fundamentados nas Sagradas Escrituras. Produtos lácteos de todos os tipos foram proibidos durante muito tempo e até quase hoje; manteiga e queijo eram proibidos em Roma todos os dias em que não fosse concedida permissão para comer carne.
Desde o século IX, o uso de lacticínios na Quaresma foi estabelecido na Europa Ocidental, especialmente na Alemanha e nos países do norte; em vão o Concílio de Kedlimbourg[12] esforçou-se para desenraizá-lo no século XI. Depois de terem tentado legitimar este costume através de dispensas temporárias, obtidas dos Sumos Pontífices, estas igrejas acabaram por desfrutar tranquilamente do seu costume. As igrejas da França preservaram o seu antigo rigor até ao século XVI, e parece que só cedeu completamente no século XVII. Em reparação desta brecha aberta na antiga disciplina, e como que para compensar com um ato piedoso e solene a flexibilização introduzida pelo uso dos lacticínios, todas as paróquias de Paris, às quais se juntaram dominicanos, franciscanos, carmelitas e agostinianos, dirigiram-se em procissão à Igreja de Nossa Senhora no domingo da Quinquagésima; e nesse mesmo dia o Capítulo metropolitano, com o clero das quatro paróquias sob sua dependência, iria fazer uma estação na Praça do Palácio e cantar uma antífona diante da relíquia da verdadeira Cruz exposta na Santa Capela. Tais práticas, que pretendiam relembrar a antiga disciplina, perseveraram até a revolução.
ABSTINÊNCIA DE OVOS – A concessão de laticínios não implicava a liberdade de comer ovos durante a Quaresma; a essa altura a antiga regra vigorou por muito tempo, e esta iguaria não era permitida exceto de acordo com a dispensa que poderia ser dada anualmente. Em Roma, até o século XIX, os ovos não eram permitidos nos dias em que não havia dispensa de carne; noutras partes, os ovos permitidos em alguns dias eram negados noutros, especialmente na Páscoa. A atual disciplina da Igreja ignora estas restrições. Deve-se notar, porém, que a Igreja, sempre preocupada com o bem-estar espiritual dos seus filhos, tem procurado preservar, para o seu bem, tanto quanto possível, as saudáveis observâncias que os ajudam a satisfazer a justiça de Deus. Apoiado neste princípio louvável, Bento XIV, muito alarmado com a extrema facilidade com que se multiplicavam por toda a parte as isenções à abstinência, renovou por uma Constituição solene, datada de 10 de junho de 1745, a proibição, agora suprimida, de servir peixe e carne na mesma mesa em dias de jejum.
ENCÍCLICA DE BENTO XIV – Este mesmo Papa dirigiu no primeiro ano do seu pontificado, em 30 de maio de 1741, uma Carta Encíclica a todos os bispos do mundo cristão, na qual expressou energicamente a dor que o afligia face ao relaxamento que já se introduzia por toda parte com dispensas indiscretas e injustificadas. “A observância da Quaresma”, disse o Pontífice, “é o vínculo da nossa milícia; por ela nos diferenciamos dos inimigos da Cruz de Jesus Cristo; por ela evitamos os flagelos da ira divina; por ela, protegidos pela ajuda celestial durante o dia, nos fortalecemos contra os príncipes das trevas. Se esta observância relaxa, cede a desonra da glória de Deus, desonra da religião católica e perigo das almas cristãs; e não há dúvida de que esta negligência é fonte de infortúnios para as pessoas, de desastres nos assuntos públicos e de infortúnios para os indivíduos.”[13]
Passaram-se dois séculos desde a advertência tão solene do Sumo Pontífice, e o relaxamento que ele queria impedir aumentava. Quantos cristãos encontramos nas nossas populações fiéis à observância da Quaresma? Aonde nos levará esta suavidade cada vez maior, senão ao declínio universal do caráter e, como consequência, à desordem da sociedade? As tristes previsões de Bento XIV já se concretizam de forma muito visível. Nações nas quais a ideia de expiação é extinta desafiam a ira de Deus e não têm escolha a não ser dissolver ou conquistar. Esforços heroicos têm sido feitos para restaurar a observância do domingo entre as nossas populações escravizadas pelo amor ao lucro e à especulação. Sucessos inesperados coroaram estes esforços: Quem sabe se o braço do Senhor, pronto para atacar, não para diante de um povo que começa a recordar a casa do Senhor e o seu culto? Devemos ter esperança nisso e essa esperança será certamente mais firme e confiante quando virmos os cristãos das nossas sociedades fracas e degeneradas, seguindo o exemplo dos ninivitas, ao longo do caminho há muito abandonado da expiação e da penitência.
PRIMEIRAS DISPENSAS – Retomemos o fio da história e observemos alguns vestígios da antiga fidelidade cristã às sagradas observâncias da Quaresma. Não cremos que seja inoportuno recordar agora a forma das primeiras dispensações que recordam os anais eclesiásticos; tiraremos um salutar ensinamento.
AOS FIÉIS DE BRAGA – No século XIII, o arcebispo de Braga dirigiu-se ao Romano Pontífice, então Inocêncio III, para lhe comunicar que a maior parte do seu rebanho era obrigado a comer carne na Quaresma, em consequência de uma fome que esgotara todas as provisões ordinárias da província; o prelado também consultou o Papa sobre qual a compensação que deveria impor aos fiéis por esta violação forçada da abstinência quaresmal. Perguntou também ao Pontífice sobre a forma de proceder com os doentes que pediam dispensa para comer alimentos gordurosos. A resposta do Papa, que está inserida no corpo do Direito[14], exala moderação e caridade, como era de se esperar; mas deduzimos deste episódio que tal era o respeito pela lei geral da Quaresma, que só a autoridade do soberano pontífice poderia dispensar aos fiéis. Os tempos posteriores não conheceram outra maneira de interpretar a questão das dispensações.
AO REI VENCESLAU – Venceslau, rei da Boêmia, enfermo com uma doença que tornava os alimentos da Quaresma prejudiciais para ele, foi até Bonifácio VIII em 1297 pedindo permissão para comer carne. O soberano Pontífice encarregou dois abades cistercienses de se informarem sobre o real estado de saúde do príncipe; e após relatório favorável concedeu a dispensa solicitada com as seguintes condições: que descobrissem com certeza se o rei não havia jurado jejuar durante toda a vida durante a Quaresma; que as sextas-feiras, os sábados e a vigília de São Matias ficavam excluídos da dispensa; e, finalmente, que o rei comeria em privado e sobriamente.
AOS REIS DA FRANÇA – Encontramos no século XIV dois Breves de dispensa dirigidos por Clemente VI em 1351 a João, rei da França, e à sua esposa, a rainha. Na primeira, o Papa, tendo em conta que o rei, durante as guerras em que esteve envolvido, se encontrava em locais onde a pesca era escassa, deu ao confessor do rei o poder de permitir a ele e à sua comitiva o uso de carne, exceto durante toda a Quaresma, nas sextas-feiras do ano e nas Vigílias designadas e desde que o rei e os seus seguidores não se tivessem comprometido por voto de abstinência vitalícia[15]. Pelo segundo Breve, Clemente VI, respondendo ao pedido que D. João lhe fez para dispensa do jejum, encarrega o confessor do monarca e todos os que lhe sucederem no cargo, de isentar o rei e a rainha da obrigação, após consulta ao médico. Alguns anos depois, em 1370, Gregório XI enviava novo Breve ao rei da França Carlos V e à rainha Juana, sua esposa, na qual delegou ao seu confessor o poder de conceder-lhe o uso de ovos e produtos lácteos na Quaresma, a juízo dos médicos, que, ao mesmo tempo que o confessor, era responsável diante de Deus em suas consciências. A permissão foi estendida ao cozinheiro e aos servos, mas apenas para provar as iguarias.[16]
A TIAGO III DA ESCÓCIA – O século XV continua nos fornecendo exemplos de recurso à Sé Apostólica exigindo dispensa das observâncias da Quaresma. Recordemos em particular o Breve que Sisto IV enviou em 1483 a Jaime III, rei da Escócia, no qual permite àquele príncipe o uso de carne em dias de abstinência, contando sempre com a opinião do confessor. Finalmente, no século XVI, vemos que Júlio II concede tal faculdade a João, rei da Dinamarca e à sua esposa, a rainha Cristina, e alguns anos mais tarde, Clemente VII o faz ao imperador Carlos V, e depois a Henrique II de Navarra e à rainha Margarida, sua esposa.
Tal foi a seriedade com que procederam ainda há alguns séculos, quando se tratou de isentar os próprios príncipes de uma obrigação que reside naquilo que o Cristianismo considera mais universal e sagrado. Julgue, por estes dados, o comportamento das sociedades modernas no caminho do relaxamento e da indiferença. Compare aqueles povos que o temor de Deus e a nobre ideia da expiação fizeram a cada ano abraçar privações tão longas e rigorosas, com as nossas raças dóceis, fracas e mornas em que o sensualismo da vida extingue dia a dia o sentimento do mal tão facilmente cometido, tão prontamente perdoado e tão fracamente reparado. O que aconteceu com aquelas alegrias dos nossos pais na festa da Páscoa, quando, após uma abstinência de quarenta dias, voltavam a saborear iguarias mais nutritivas e saborosas, interrompidas por tão longo período? com que encanto, com que serenidade de consciência retomaram os costumes mais acessíveis da vida, suspensos para mortificar as almas no recolhimento, na separação do mundo e na penitência! Esta consideração leva-nos a acrescentar algumas palavras para ajudar o leitor católico a conhecer bem a verdadeira natureza dos séculos de fé da Quaresma.
SUSPENSÃO DE TRIBUNAIS – Tenhamos em mente a época em que não só as diversões e os espetáculos eram proibidos pelo poder público[17], mas até os tribunais eram fechados para não perturbar a paz e o silêncio das paixões, tão favoráveis ao pecador, para que ele pudesse reparar as feridas da sua alma e providenciar a sua reconciliação com Deus. Já em 380, Graciano e Teodósio publicaram uma lei ordenando aos juízes que suspendessem todos os processos e ações judiciais durante os quarenta dias anteriores à Páscoa[18]. O Código Teodósico contém muitas disposições semelhantes; e vemos que os concílios de França, ainda no século IX, dirigiram-se aos reis carolíngios, exigindo que aplicassem aquela legislação sancionada pelos cânones e recomendada pelos Padres da Igreja[19], mas, confessemos com vergonha, só são observados entre os turcos que hoje ainda suspendem todos os procedimentos judiciais durante os trinta dias do Ramadão.
PROIBIÇÃO DA CAÇA – Durante muitos anos a Quaresma foi considerada incompatível com o exercício da caça, devido à dissipação e ao tumulto que a acompanha. No século IX, o Papa São Nicolau I proibiu-o, durante este tempo sagrado, aos búlgaros, recentemente convertidos ao cristianismo. E ainda no século XIII, São Raimundo de Peñafort, na sua Suma de Casos Penitenciais, ensinava que não é possível praticar este desporto sem pecado durante a Quaresma, se a caça for clamorosa e se for realizada com cães e leões[20]. Esta obrigação é uma das muitas que já não existem, mas São Carlos renovou-a na província de Milão, num dos seus concílios.
Não há certamente lugar para nos surpreendermos ao ver a caça proibida durante a Quaresma, quando nos lembramos que, nos séculos de vigorosa fé cristã, a própria guerra, por vezes tão necessária para a tranquilidade e o interesse legítimo das nações, teve de suspender as hostilidades durante a santa Quaresma. Já no século IV, Constantino ordenou a cessação dos exercícios militares, aos domingos e sextas-feiras, para homenagear Cristo que sofreu e ressuscitou nos dias mencionados, e para não prejudicar o recolhimento dos cristãos com que estes mistérios exigem ser celebrados. No século IX, a disciplina da Igreja Ocidental exigiria universalmente a suspensão das hostilidades durante a Quaresma, exceto em casos de necessidade, como se viu nas atas da Assembleia de Compiegne, em 833, e pelos concílios de Meaux e Aquisgrán, ao mesmo tempo. As instruções do Papa São Nicolau I aos búlgaros manifestam a mesma intenção; e vemos numa carta de São Gregório VII a Desidério, abade de Monte Cassino, que esta regra ainda era observada no século XI. Vemos isso também observado até o século XII na Inglaterra, segundo Guilherme de Malmesbury, pelos exércitos adversários: o da Imperatriz Matilda, Condessa de Anjou, filha do Rei Henrique e o do Rei Estêvão, Conde de Boulogne, que, no ano de 1143, iriam se engajar na luta pela sucessão ao trono.[21]
TRÉGUA DE DEUS – Todos os leitores conhecem a admirável instituição da Trégua de Deus, com a qual a Igreja do século XI conseguiu pôr fim ao derramamento de sangue em toda a Europa, suspendendo o porte de armas quatro dias por semana, de quarta-feira à tarde até segunda-feira de manhã, durante todo o ano. Esta portaria, sancionada pela autoridade dos Papas e dos concílios, com a assistência de todos os príncipes cristãos, era uma mera extensão, em cada semana do ano, da disciplina, em virtude da qual toda a atividade militar era proibida durante a Quaresma. O santo rei da Inglaterra, Eduardo, o Confessor, desenvolveu ainda mais uma instituição tão preciosa ao promulgar uma lei confirmada por seu sucessor Guilherme, o Conquistador, e sob sua virtude a Trégua de Deus deveria ser mantida inviolavelmente desde o início do Advento até a oitava da Epifania, da Septuagésima até a oitava da Páscoa, e, da Ascensão até a oitava de Pentecostes, acrescentando também os dias de Têmporas, as vigílias de todas as festas, e, por fim, semanalmente o intervalo de sábado, da meia-noite, até a manhã de segunda-feira[22]. Urbano II no Concílio de Clermont, ano 1095, depois de regulamentar tudo o que dizia respeito à cruzada, usou a sua autoridade apostólica para prolongar a Trégua de Deus, tomando como ponto de partida a suspensão das armas mantidas na Quaresma; ele prescreveu por decreto, renovado no concílio realizado em Roma no ano seguinte, que toda atividade de guerra fosse proibida desde a Quarta-feira de Cinzas até a segunda-feira seguinte à oitava de Pentecostes, e em todas as vigílias e festas da Santíssima Virgem e dos Santos Apóstolos; tudo isto sem prejuízo do que foi previamente legislado para cada semana; é conveniente saber, desde quarta-feira à tarde até segunda-feira de manhã[23].
PRECEITO DA CONTINÊNCIA – A sociedade cristã testemunhou de maneira tão plausível seu respeito pelas sagradas observâncias da Quaresma e tirou suas tempos e festas do ano litúrgico para estabelecer neles as instituições mais preciosas. A própria vida privada não experimentou menos a influência salutar da Quaresma; e a cada ano o homem recuperava novas forças para combater os instintos sensuais e superestimar a dignidade da sua alma, enfrentando a sedução do prazer. Durante muitos séculos, a continência foi exigida dos cônjuges durante a Quaresma, e a Igreja preservou no Missal a recomendação de uma prática tão saudável.[24]
USOS DAS IGREJAS ORIENTAIS – Interrompemos aqui a exposição histórica da disciplina quaresmal, sentindo que mal tocamos em assunto tão interessante[25]. Teríamos prazer de falar longamente sobre os costumes das Igrejas Orientais que preservaram melhor do que nós o rigor dos primeiros séculos do Cristianismo. Nos limitaremos, porém, a fornecer alguns breves detalhes. No volume anterior, o leitor pode perceber que o domingo que chamamos de Septuagésima, os gregos chamam de Prosfonesima porque anuncia o jejum quaresmal que em breve começará. A segunda-feira seguinte conta como o primeiro dia da semana seguinte, denominado Apocreos, pelo nome do domingo com que termina e que corresponde ao nosso Domingo de Sexagésima; o nome Apocreos é um aviso à Igreja Grega de que o uso de carne deve ser interrompido em breve. Na segunda-feira seguinte abre a semana chamada Tirofagia, que termina com o domingo desse nome, que é o nosso de Quinquagésima; lacticínios são permitidos durante esta semana. De qualquer forma, a segunda-feira seguinte é o primeiro dia da primeira semana da Quaresma, e o jejum começa com todo o seu rigor nessa segunda-feira, enquanto os latinos o iniciam na quarta-feira.
Durante toda a Quaresma são proibidos lacticínios, ovos e também peixes; a única alimentação permitida é o pão com legumes e mel, e para quem está perto do mar os vários tipos de ameixas que este fornece. O uso do vinho, durante muito tempo proibido nos dias de jejum, acabou por ser introduzido no Oriente, assim como a permissão para comer peixe nos dias da Anunciação e dos Ramos.
Além da Quaresma de preparação para a festa da Páscoa, os gregos celebram outras três no decorrer do ano: a que chamam de Quaresma dos Apóstolos, que se estende desde a oitava de Pentecostes até a festa dos Santos Pedro e dos Santos Paulo; o que chamam da Virgem Maria, que começa no dia primeiro de agosto e termina na véspera da Assunção; e, por fim, a Quaresma de preparação ao Natal, que dura quarenta dias inteiros. As privações impostas durante estas três Quaresmas são análogas às da Grande Quaresma, sem serem tão austeras. As outras nações cristãs do Oriente também celebram várias Quaresmas, e com maior austeridade que os gregos; mas esses detalhes nos levariam muito longe. Terminamos aqui o que nos propusemos dizer sobre a Quaresma no seu aspecto histórico; agora vamos lidar com os mistérios deste tempo sagrado.
[1] São Mateus, IX, 14-15.
[2] Quarta Catequese.
[3] 1ª Homilia sobre o jejum.
[4] IV Homilia ao povo de Antioquia.
[5] Sobre a Regra de Santo Agostinho, cap. III.
[6] Parte IV, Questão 28, artigo 2.
[7] 2-2, Questão Questão 147, artigo 7.
[8] In IV Dist. XV, art. 3, quaest. 8.
[9] In IV Dist. XV, quaest. 9, art. 7.
[10] Labbe, Concilios, t. VII.
[11] In IV Quaest. 147, art. 6.
[12] Labbe, Concilios, t. IX.
[13] Constituição Non ambigimus.
[14] Decretais, 1, III; sobre o jejum, tit. XLVI.
[15] D’Achery, Spicilegium, t. IV.
[16] Ibid.
[17] Justiniano deu esta lei, como disse Fócio, Nomocanon, tit. VII, c. 1.
[18] Cod. Teodos., 1, IX, tit. XXXV, 1.4.
[19] Conc. De Meaux, em 845. Labbe, Concilios, t. VII, Conc. Tributo em 895. Ibid. X-IX.
[20] Summ., cas. Paenit., 1, III, tit. XXIX. De laps. et disp., 1.
[21] Labbe, Concilios, t. VII, VIII e X.
[22] Labbe, Concilios, t. IX.
[23] Orderico Vital, Hist. de la Igles., lib. IX.
[24] Missa pro sponso et sponsa.
[25] Para a história, duração e caráter da Quaresma antiga podem consultar as obras de Mons. Callewaert:
Sacris erudiri, p. 449-633. – Sobre o significado da Quaresma, o pequeno opúsculo de Dom Flicoteaux (Bloud et Gay, 1946).

